A coluna desta última quarta-feira de outubro traz a literatura como arte e como necessidade vital. Traz a literatura dissecada no dia-a-dia das pessoas, em suas rotinas, pepinos, sonhos, trabalho e devaneios.
Hoje trago a ilustre presença do poeta, engenheiro, pesquisador e professor Deyvid Barreto, que nos brindou com uma entrevista mui agradável.
Deyvid, antes de tudo, se apresente aos leitores da coluna! Manda brasa!
Olá! Meu nome é Deyvid W. Barreto Rosa, tenho 30 anos e sou natural de Esmeraldas, Minas Gerais. Sou engenheiro ambiental e civil, professor e pesquisador, atualmente estou cursando Doutorado em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos na UFMG. Sou bolsista pela Capes e, eventualmente, participo de alguns projetos de extensão sobre inundações e medidas de prevenção, controle e resposta.
Okay, Deyvid. Vamos lá: desde quando a literatura está presente em sua vida? Você se recorda de quando escreveu os primeiros versos? Lembra do contexto das linhas?
Comecei a escrever no início da adolescência, com mais ou menos 13 anos de idade, para conseguir elaborar ou aliviar as crises existenciais que eram frequentes nessa época. Mas não sei se esses textos são literatura. São relatos muito pessoais de um sofrimento existencial intenso e apenas duas pessoas os leram. Em geral, minha inspiração vem da experiência da dor, do sofrimento e da solidão existenciais. Outros momentos em que escrevi bastante foram: o ano em que minha namorada, por quem eu estava perdidamente apaixonado, morou fora do país; e agora, no meio da pandemia.
Arte: um entretenimento ou uma necessidade?
Necessidade. Mesmo quando é entretenimento, também é necessidade. A arte é parte do que nos faz humanos. A arte nos faz humanos desde a primeira pintura rupestre, a primeira música, os primeiros versos, que foram os meios pelos quais nos comunicamos com o Outro. A arte nos tira de uma vida exclusivamente animal, instintiva, superficial, e nos dá acesso a uma experiência mais profunda, na qual podemos buscar algum sentido.
Há poesia na engenharia? E o inverso?
Não é simples. Há beleza e poesia na matemática, na arquitetura, nas obras em que desafiamos a gravidade e nossas dimensões. Mas, no dia a dia, a engenharia é muito pragmática, há pouco espaço para reflexão. Por outro lado, com um olhar treinado pela poesia é possível ver a beleza e a poesia no cotidiano. E o contrário também, já que a engenharia existe para dar resposta concreta (com o perdão do trocadilho) para problemas reais que abundam em nossa poesia, como ter um lugar para morar, água para beber, proteção contra as intempéries e as forças da natureza. Com a engenharia, a gente tenta transpor nossa pequenez e efemeridade, construindo obras que desafiam o espaço e o tempo. Na minha área de atuação e pesquisa, por exemplo, estou o tempo inteiro buscando compreender e representar a relação entre as forças humanas e a natureza, a relação entre a sociedade, a cidade e a água. Tem um verso do Brecht, que já é a epígrafe de minha tese de doutorado, que resume parte do que eu estudo de uma forma quase literal:
“Do rio que tudo arrasta
se diz que é violento,
ninguém diz violentas
as margens que o cerceiam.”
É incrível como nos relacionamos em sociedade com nossos rios exatamente dessa forma e, assim também, nos relacionamos com todas as forças que não conseguimos, mas insistimos, em controlar.
Quais são suas referências literárias e/ou musicais na hora de escrever?
Não é porque a revista se chama Arte Brasileira, mas acho que sou um pouco nacionalista ou até bairrista. Sou apaixonado por literatura e música brasileira, e minhas leituras internacionais são quase todas latinas ou de língua portuguesa. Minhas maiores referências são meio clichês, são os gênios e as gênias de nossa literatura: Clarice, Drummond e Rosa. Mas é impossível não citar os cortes na carne que me fizeram a poesia de Manoel de Barros, Leminski e Gullar, a prosa ultra lúcida da Conceição Evaristo e a escrita esmagadora de Carolina Maria de Jesus. Na música, me encantam nossos deuses compositores Ary Barroso, Tom, João Gilberto, Caetano, Gil e Chico. Atravessando as fronteiras, dos latinos que amo e me convencem que não somos uma ilha na América Latina, sou aficionado pelo realismo mágico do Gabo, amo as elocubrações do Borges e sou fã da música do uruguaio Jorge Drexler. Dos falantes do português, estou perto de ler toda a obra do Saramago, a poesia do Pessoa me dá até arrepios e conheci recentemente o incrível Valter Hugo Mãe, de quem já quero ler tudo. Fora do mundo latino, o que mais leio são distopias e clássicos. Por fim, neste último ano tenho experimentado mais literatura contemporânea e estou apreciando muito! Recentemente percebi que minha biblioteca era majoritariamente branca e masculina, de modo que tenho buscado ler mais autoras mulheres e negras. Por meio do Clube de Leitura da Livraria do Belas, de BH, tenho conhecido obras incríveis, dentre as quais destaco as excelentes ficções históricas da Eliana Alves Cruz. Das poucas boas surpresas do último ano, ganhei um amigo escritor e amante da literatura, que além de me apresentar referências extraordinárias como a prosa-poética de Aline Bei, me influenciou com sua própria obra a escrever sem piedade.
Poesia na pandemia: para você, qual foi a contribuição da escrita neste período?
A poesia me salvou. Quando perdi a fé, a esperança e nem a terapia e os remédios foram suficientes para me tirar do abismo, escrever poesia abriu um caminho possível para sair. No mínimo, me ajudou a apurar meus sentidos para perceber alguma beleza no fundo do poço, a deixar registrado o grito da clausura e, talvez, tenha me ajudado a comunicar a outrem os sentimentos mais duros e difíceis de verbalizar.
E muito obviamente, não existiria outra forma de encerrar esta entrevista sem um dos sanguíneos poemas do poeta.
“Penitência“
Arrastar longas correntes pelas ruas.
Cada elo formado pelo crime de um antepassado;
há também os elos dos próprios traumas
e erros.
Quem caminha na rua à meia-noite?
Para quem o cachorro late?
A cidade dorme, até os insones estão dentro das casas.
E sob as marquises, os outros dormem um sono pesado.
Afora os policiais, os entregadores, os enfermeiros e os seguranças,
quem está na rua e não está trabalhando:
o que faz na rua
a essa hora?
Alta noite,
a rua vazia
não está mais.
Alguém caminha.
Qual será seu destino?
É homem, com certeza.
Que riscos corre uma mulher que caminha sozinha na rua
a essa hora?
O que faz na rua
esse rapaz
acordado enquanto a cidade dorme?
Por que não dorme também?
Os sons das longas correntes arrastadas são inaudíveis diante do ruído da cidade.
Ainda assim, o caminhante deixa seu rastro,
insculpindo terra e asfalto
com as marcas que a vida insculpiu em si.
A vontade é de reunir todas as forças
do nojo e do ódio,
esticar as correntes
e derrubar tudo o que está de pé no caminho.
Menos a flor.
A indelével, intangível
e feia flor:
esta deve permanecer de pé.