Eles tocando de olhos fechados, dançando, sorrindo, se olhando, rodando a baqueta, fazendo graça com as cabecinhas sincronizadas jogando pros lados e se abraçando ao final das músicas. O que foi aquilo, Barreiras? Os braços arrepiando e eles pulando, transbordando alegria dentro do compasso perfeito, na unidade exata entre mão e couro, pele com pele com os tambores. Corpos percussivos que performaram a capoeira, o axé das antigas, a baianidade musical de raiz, a ancestralidade sonora que tirou do chão os pés de um público sedento por movimento, faminto desse balanço baiano que vive preso nos quadris barreirenses.
Quem são esses percussionistas, Bahia? O de sandália havaiana branca é o filho de Saulo Fernandes. Saulinho, filho pródigo de Barreiras, que abraça o mundo com suas doçuras e semeia tanta esperança na beleza da vida aos corações que acompanham sua belíssima jornada aqui na Terra, com música e poesia. João Lucas tem tanto de Saulo e Saulo tem tanto de Bosco. Nosso mestre barreirense! Que nos encantou com o show “Axé pro mundo todo” naquela segunda-feira de carnaval no cais, abrindo os caminhos para a estreia de Filhos da Bahia nesse lugar. Nessa noite Barreiras brilhou e brilhou muito, viu?
Os percussionistas de Bosco Fernandes assistindo de pertinho ali na lateral do palco, aí Ricardo me viu escrevendo, encostou em mim e falou: “A gente toca parecido, né?” Essa pergunta me emocionou tanto, porque sim! É muito parecido mesmo, em termos de nivelamento técnico, mas ali no verbo parecer eu senti tanto pertencimento, identificação, confirmação de uma identidade percussiva eminentemente baiana que a banda de Bosco preserva no Oeste baiano de um jeito tão especial, com tanto amor envolvido.
Nesse momento eu percebi o quão importante era aquela noite, para acender ainda mais essa chama que resiste acesa há tantos anos e que precisa mesmo ser salvaguardada, multiplicada e perpetuada, porque aqui é a Bahia também. E o papel que Bosco Fernandes e banda cumpre no fortalecimento dessa identidade transcende a força da colonização histórico-cultural que outros estados exercem sobre esse lugar, em termos práticos e simbólicos, desde o início do processo de territorialização do agronegócio.
Bosquinho é o Cerrado vivo. E ali estava, balançando todo mundo, a banda que trouxe o João Lucas pela primeira vez ao palco tradição, no Carnaval Cultural, em plena praça Landulfo Alves. Ai, meu Deus! Aquele rostinho tão parecido com o de Saulo, ao lado de músicos e multi-instrumentistas tão jovens quanto ele, com um protagonismo absoluto da percussão, em uma musicalidade clássica dos carnavais da Bahia. Afirmação! O Cerrado agradece. As baianidades barreirenses saúdam, cheias de honra, essa chegada e deseja que os Filhos da Bahia venham sempre fazer carnaval, em todas as épocas do ano nesse lugar.
Representatividade! Uma banda com a maioria de músicos negros. Com detalhes muito encantadores, um show pra dançar assistindo, pra soltar o corpo e grudar os olhos no palco. Um espetáculo percussivo, cuja performance reflete a diversidade em muitos aspectos. O baterista que canta! Como essa quantidade de pratos e caixas não te “impede de cantar, ararará”? O vocalista que do nada compra um jogo de capoeira com um percussionista! Outro vocalista que também entrega tudo na percussão! Todos brincando em cena, promovendo diversão por transbordamento. Uma juventude viva e pulsante, continuando uma história muito antiga desse nosso negro estado, sacramentando legados do axé que se desdobram através da musicalidade de nossos tão negros tambores. Embalando corações enquanto fortalecem identidades. É a Bahiaaaaa!!!!!!!!
SOBRE A AUTORA DESSA CRÍTICA:
Fernanda Lucena é produtora do XIII Festival Internacional de Percussão 2 de Julho, que acontece entre os dias 22 e 27 de julho de 2024, no SESC Pelourinho, em Salvador/BA. Assessora de Comunicação do Grupo de Percussão da UFBA, que completa em 2024 seus 60 anos de história e contribuição ao universo percussivo baiano no mundo inteiro. Na Tabuleiro Produções ela produz o autor da tese “A Teatralidade na Performance Percussiva”, o Dr. Aquim Sacramento. Apelidada na Capoeira Angola como Semente, ela é umbandista há 3 gerações e continuadora do legado do terreiro de seus avós, a Tenda de Axé Pai José de Aruanda. Estuda Percussão desde 2019 no que hoje é consagrado como Instituto Eu vim de Lá, com aplicações práticas e cotidianas nas giras da Associação Centro de Umbanda Casa Branca de Oxalá. Na pandemia, ganhou o Prêmio Emília Biancardi de Preservação dos Bens Populares, Históricos e Identitários da Bahia. Atualmente, é aluna do Curso Livre em Percussão da Escola de Música da UFBA e colunista da Revista Arte Brasileira.
(Contato: fernandalucenaproduz@gmail.com / @fernandalucenaproduz)