Revista Arte Brasileira Crítica Musical Se eu gritar, ninguém vai me ouvir – lançando música em 2024
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Se eu gritar, ninguém vai me ouvir – lançando música em 2024

A Revista Arte Brasileira me convidou para compartilhar a experiência de lançar meu primeiro álbum, o independente “Falha Luz”, que saiu pelo meu projeto musical chamado Rasura. Portanto, escrevo aqui um pouco sobre como fiz para que esse álbum chegasse até eles e outros tantos, além de traçar um panorama despretensioso do mercado da música de hoje.

Durante este texto, optei por alternar o foco da escrita entre as posições de artista e ouvinte, para não cair em armadilhas e, quem sabe, ser capaz de produzir uma análise de alguma maneira coerente do consumo musical contemporâneo.

Um supermercado infinito

Tentarei não me alongar no que é óbvio: os streamings de música oferecem um acumulado exorbitante de artistas e gêneros, vivos e mortos, da época do gramofone até a incógnita da inteligência artificial, todos competindo entre si por mais minutos nos nossos ouvidos.

Você tem o seu tocador favorito e lá encontra o jazz feito na Etiópia na década de 60 e o funk bolha que explodiu anteontem no Rio de Janeiro. Tudo junto, tudo a poucos cliques de ser alcançado.

A interconexão é tão grande que o formato álbum passou a não dar mais conta. Simplesmente não há tempo para ouvir discursos tão longos e monotemáticos, me parece.

Artistas de diferentes tempos, espaços e gêneros se amalgamaram em playlists de academia, de café da manhã, de moods, sem contar aquelas também para acompanhar uma leitura, escrever código, ou seja, playlists de música para não serem escutadas.

Qual é o mood de hoje?

Eu ando pelas ruas movimentadas de São Paulo e vejo que boa parte das pessoas está com seus fones de ouvido. Me pergunto o que elas escutam e, mais do que isso, por que escutam?

Eu mesmo, às vezes, me pego de fone sem tocar um ruído sequer, minha única intenção sendo a de escapar do barulho incessante que é hoje paisagem em qualquer cidade grande.

Mesmo contra o meu agrado, existe algo de funcional em todo esse ruído urbano. São motores de carros e ônibus, edifícios em construção e outras coisas que parecem condicionar o funcionamento da cidade para o bem ou para o mal. Mas e a música, funciona pra quê?

O que esperamos enquanto ouvintes de música

Em algum momento no passado, acredito que existiu um pacto silencioso entre os artistas e a sociedade. Ok, você, artista, está livre para viver uma vida de excessos e extravagâncias que, em outro contexto, nosso conservadorismo não nos permitiria aceitar. Em troca, nos dê material para que possamos sonhar.

A internet parece ter mudado um pouco essa lógica a partir do momento em que, em alguma medida, todos nós nos tornamos criadores – palavra essa que adoramos confundir com artistas.

A forma como interagimos com a música também mudou bastante. Antigamente, esperávamos ansiosamente pelo lançamento de álbuns e singles, clipes na MTV, participando de uma experiência coletiva de descoberta e apreciação. A música hoje é consumida de forma mais diluída e, ouso até dizer, mais funcional.

Todos queremos descobrir novos e bons artistas, mas nos agarramos ao conforto daquilo que já conhecemos e já amamos. Estamos sempre buscando sons que ressoem com nossos sentimentos e experiências.

Aqui entra um desafio enorme para artistas em início de carreira, que precisam encontrar maneiras de se conectar com seu público já bombardeado por informações e estímulos quase 100% do tempo em que estão (estamos) acordados. Como artista, o que fazer para acessar os sentimentos de novos ouvintes?

Como um artista independente se conecta com as pessoas?

Excluo de saída os bem-aventurados financeiramente e aqueles anabolizados por gravadoras, marcas ou qualquer artista cujo sobrenome já nos soe familiar.

O que se pede de nós, artistas independentes, é que a gente “participe da conversa”. Alguns até fazem isso com certa leveza, comentando reality shows, fazendo publicidade, interagindo com plataformas políticas, etc. Se ao ler isso você pensou na palavra “influencer”, você não errou. Não uso aqui o termo em tom de crítica, mas sim como uma observação de como a linha entre artistas e criadores de conteúdo está cada vez mais tênue.

De um modo ou de outro, para atingir algum destaque é preciso que haja uma conexão entre artista e ouvintes. E para ganhar espaço no coração desses novos ouvintes, se faz necessária algum tipo de exposição. Se investir rios de dinheiro em anúncios na rede social não é uma opção, nossa melhor arma é contar boas histórias. Sendo assim, conto um pouco da minha.

Rasura, humilde aspirante a uma classe média artística

Utilizo no subtítulo o termo “classe média artística” emprestado de um artigo do crítico musical estadunidense Ted Gioia, em que ele advoga pela estruturação do que podemos traduzir também como “midstream” – algo entre a vida precária e volátil da arte underground e o estrelato dos rios de leite e mel, também conhecido como mainstream.

Meu nome é André, me apresento artisticamente como Rasura. Nasci e vivi minha adolescência em Santo André/SP, participar de uma banda era um traço de identidade muito comum naquele espaço. Hoje, sinto que não é mais.

Quando comecei a compor, as dificuldades de se estabelecer enquanto artista eram imensas, pouco se sabia sobre como alcançar algum tipo de reconhecimento ou de público e aqueles que eram alçados a voos maiores tinham em comum a centralidade da figura de algum produtor da moda ou empresário misterioso.

Me lembro que a gente tocava sempre à espera de um fantasma, uma entidade que nomeamos de “o olheiro”, assim como no futebol. O olheiro seria alguém à paisana, disfarçado num festival de bandas com adolescentes de 16 anos, com o intuito de encontrar algum talento inato que cada um de nós acreditava que tinha.

São outros tempos. Quase todos os meus amigos que acreditavam, hoje não acreditam mais. Hoje fazemos música no computador (até mesmo no celular), para que sejam consumidas no celular (até mesmo no computador). Não vou minimizar a existência de comunidades de fãs que se formam na internet, mas posso dizer que a experiência comunitária, tanto de se fazer quanto de se ouvir música, está se tornando mais e mais rara.

Gravar meu álbum foi uma jornada de descoberta e adaptação. Utilizando ferramentas digitais, consegui compor, gravar e produzir de maneira independente. Ótimo. Mas independente, em última instância, significa que houve investimento do próprio bolso, que dividi a atenção com outra profissão e que produzi no tempo que me foi possível. No meu caso, levou cerca de 6 anos.

O Lançamento de “Falha Luz”

Lancei meu primeiro álbum “Falha Luz” no primeiro semestre de 2024. Fiz a minha lista de prioridades: criar uma fã page, aquecer as redes sociais com singles, produzir videoclipe, conectar com artistas de nicho semelhante, escolher uma música para alavancar o lançamento – o que é de praxe.

Sim, eu também sou apaixonado por grandes artistas que surgiram em outras épocas, na sua estética, forma lacônica de comunicação e postura quase sempre distante. Descobri, no lançamento do meu trabalho, porém, que esses espelhos não nos servem mais. A indústria mudou demais, nós mudamos demais.

No mês em que fiz o meu lançamento, saíram outros tantos discos, independentes ou não, brasileiros ou não. São centenas e a saturação do mercado exige de nós uma abordagem inovadora. Eu só tinha uma chance de fazer esse disco ser escutado.

Decidi mapear artistas, jornalistas, produtores(as), influencers (por que não?) que eu consumia, que estavam próximos ou pertenciam ao meu nicho musical. Consegui seus endereços de e-mail, de alguns consegui até o endereço postal. Para esses, enviei um envelope.

No envelope estilizado, 3 itens: um postal com arte da capa do “Falha Luz”, uma carta escrita à mão com uma apresentação e um cartão de ponto. Sim, como esses do mundo corporativo. No cartão de ponto dizia que eu pagaria 1 centavo para cada play comprovado. Você marca o X em frente ao nome da música, me envia uma foto e eu te pago. Simples assim.

Essa foi a maneira que encontrei de questionar essa estranha relação profissional entre artistas, streamings, jornalistas musicais e ouvintes. Investir 1 centavo no play de uma música minha é pagar 3x mais do que recebo por esse mesmo play no streaming. Em média, recebemos cerca de 0,03 centavos por play hoje.

As respostas, em geral, foram muito boas. Minha provocação foi bem recebida e acabei estreitando laços com gente que eu admirava. Se meu trabalho foi ouvido? Sim e não. Basta ir lá no seu streaming de música favorito e procurar por Rasura – Falha Luz. Acredito que os números não vão te impressionar, mas talvez a música faça esse serviço. Ao menos assim espero.

O que vale e o que não vale a pena

Nunca saberei ao certo onde meu disco chegaria com outra estrutura financeira, mas sei que minha estratégia o levou às pessoas certas. Eu não nasci ontem na música e conheço o potencial do que faço. Dentro das inúmeras variáveis, sei que há espaço para mim. Não tenho ambições totalizantes; não sou um profeta ou um conquistador espanhol. Sou um artista, buscando conexão.

Acredito na construção de comunidades e me lembro que os exemplos de sucesso fugaz na arte quase sempre se explicam por investimentos altos, apadrinhamento ou fatores ocultos, dando a falsa impressão de que certos artistas surgiram “do nada”. Ainda que esses facilitadores existam, não podemos cair na tentação de justificar nossos insucessos pelas conquistas dos outros. Isso não vale a pena.

Vivemos em um capitalismo tardio apocalíptico, onde a maioria dos empregos já não faz sentido. A arte não se encaixa nesse cenário. Sempre vale a pena criar, questionar e buscar novos pontos de vista.

Quando um som novo se apresenta para nós, ele se mistura a outras centenas de milhões já disponíveis, mas assim também são os encontros que nos transformam. Como amantes da música, nos resta manter os ouvidos generosos em meio a tanta bagunça, buscando criar conexões que nos permitam transcender o papel de meros consumidores. Quem sabe a gente não se encontra em alguma comunidade criada pela música?

O título do artigo foi extraído do álbum “Ninguém vai me ouvir” (2018) segundo e último dos amigos da banda Alaska, que já não existe mais. 

> Artigo escrito por André Lucio de Oliveira (Rasura) em junho de 2024, sob encomenda para a Revista Arte Brasileira

Crédito: Crédito: @_nayron / @dreamland.digital
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