Em 24 anos de atividade, a Cia. Pessoal do Faroeste sempre viveu “dias de luta, dias de glória”. A vitória sempre por suas ações que combinam arte e caridade social. Derrotas quando se trata de apoios financeiros.
Durante mais de uma década, a companhia dirigida por Paulo Faria teve sede em um espaço localizado no bairro da Luz, na capital paulista. Não contemplados nos editais que sustentava os alugueis desde 2018, o grupo já estava sofrendo ameaças de despejo. A campanha #FicaFaroeste, as ações autossustentáveis e gastos pessoais dos próprios integrantes amenizaram o transtorno.
O Covid-19 e as consequentes paralisações de atividades artísticas, no entanto, foi a última facada. Em janeiro deste ano, foram obrigados a entregar o espaço. Entretanto, o “sangue nos olhos” dos membros do Pessoal do Faroeste não é do tipo que desiste. Inclusive, a desistência do projeto atingiria diretamente as comunidades carentes da região da Luz.
A Companhia é uma das únicas esperanças para essas pessoas, tanto como mensageiros na prática da cultura, quanto em suas atividades sociais, distribuindo alimentos e fomentando a dignidade humana até onde conseguem chegar.
O fim deste ciclo é apenas o começo de outro. Segundo Paulo, o trabalho a partir deste ano é que eles tenham uma sede própria, sem depender de aluguéis. Como sabemos, esse processo não será fácil e rápido. Nós da Arte Brasileira nos solidarizamos com a situação que o grupo enfrenta, e também com a comunidade que perde junto.
Paulo Faria respondeu algumas perguntas que fiz. Elas, vale dizer, clareiam o assunto. A entrevista você confere a seguir. Antes, porém, já deixo a campanha de financiamento coletivo do grupo. Ajude!
Matheus Luzi – Paulo, em primeiro lugar, obrigado por topar esse bate-papo, e também deixo minha gratidão pela coragem em expor essa situação tão delicada. Nesta primeira pergunta, acho oportuno você nos contar o que a Cia. Pessoal do Faroeste realizou em 20 anos neste espaço, como arte e como ação social.
Paulo Faria (diretor) – Na verdade estamos na rua do Triunfo há dez anos, mudamos em 2012, e desde 2002 estudamos na região. Fizemos um estudo dos cortiços, e em 2006 nos instalamos de fato na rua Cleveland.
Nesse período de dez anos, produzimos a Trilogia Degenerada, assim que mudamos para a rua do Triunfo, depois fizemos a Trilogia do Cinema e mais três peças linkadas a Cartografia Afetiva do Quadrilátero do Pecado, uma história mais contemporânea, e com isso chegamos até as ocupações, cortiços e favelas da região.
Tudo isso gerou durante esse período cerca de dez espetáculos, três Encontros Brasileiros de Drogas, da Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas, três prêmios da Ouvidoria do Estado, ocupações negras e muito mais nesse âmbito social, como cerca de 15 documentários.
Todo esse envolvimento também nos fez criar o Instituto Luz do Faroeste, que completou três anos agora e nos dava a estrutura e logística para todas as movimentações em prol da sociedade da região.
Matheus Luzi – A luta para vocês se manterem nesta sede já dura aproximadamente dois anos. Então, pergunto: como foi esse período? Digo no sentido financeiro, de batalhas pela sobrevivência, de ajudas de terceiros, angústias, ações…
Paulo Faria – Desde 2002 a companhia vive de editais públicos, principalmente a Lei de Fomento ao Teatro. Infelizmente, esse é o quarto ano seguido que não somos contemplados, sendo que vinha dos de dez editais seguidos contando com os editais.
Diante de isso, passamos a solicitar alguns empréstimos, e outros editais mais ligados a ficção, como nossa websérie “FOME”. Sendo assim, mediamos alguns acordos para nos livrarmos do despejo e pagarmos as contas. Também não tivemos nenhum patrocínio, o que seria essencial, mas pelo menos tivemos algumas doações.
O problema é que com a pandemia, essa verba adicional parou de chegar, não conseguimos arcar com o acordo, e diante desse cenário, perdemos a luta. Ainda banquei todos os custos com minhas reservas pessoais, inclusive, por conta disso, passei a morar na sede da companhia com todos os animais abandonados que cuidava.
“Por enquanto, vamos manter nosso suporte, mas ainda sem recursos, milhares de pessoas ficarão sem alimentos em suas casas.”
Matheus Luzi – Percebo que vocês se preocupam muito com a arte que desenvolvem, mas fica claro o quanto as questões sociais norteiam o trabalho da companhia. Você acredita que esse despejo, de fato, irá afetar até que ponto a população regional?
Paulo Faria – Principalmente nesse período em que mudei para a sede, ficando lá por volta de um ano e meio, cadastramos cerca de 1.000 famílias da região que passavam necessidades.
Minha vontade era fazer uma cartografia da fome, como a situação da fome se manifestava na região. Criamos uma relação de afeto e muita empatia com essa parte da população de São Paulo/SP e até agosto conseguimos manter regularmente a doação de cestas básicas para todos.
Após isso, as doações despencaram, e todas essas famílias sofreram com a falta de suporte que oferecíamos, uma vez que o descaso do poder público é gritante com a região da Luz.
Hoje temos um prédio ao lado da antiga sede, chamado Amarelinho, e de lá procuramos dar sequência nas ações. Por enquanto, vamos manter nosso suporte, mas ainda sem recursos, milhares de pessoas ficarão sem alimentos em suas casas.
Matheus Luzi – Em sintonia com a pergunta anterior, qual a relação que o Pessoal do Faroeste sempre traçou entre arte e o social?
Paulo Faria – Nesse momento seremos uma companhia teatral sem palco, com o foco nas ações sociais, ou seja, uma coisa está ligada a outro em sinergia. Não mantemos nossos passos voltados ou para a arte, ou para o social, mas há uma simbiose entre os dois aspectos.
A nossa websérie “FOME” resume bem o que estou falando. Ao mesmo tempo em que ela é um projeto de arte, foi a nossa luta social que fez com que tivéssemos a capacidade de produzir essa arte, voltada para a geração de consciência do público.
Tentaremos ainda esse ano algum edital para uma nova peça de teatro, trabalhando esse aspecto social da fome dentro de cortiços. Mesmo sem o palco, ocuparemos espaços, seja a própria rua, para seguirmos com a arte, ao mesmo tempo em que mantemos nossa luta pela população.
Além disso, uma das maneiras de fazermos esse paralelo, é através de nossos personagens. Inserir, por exemplo, uma heroína viciada, preta, prostituta, ou seja, trabalhar com “rótulos” que carregam discriminação, e dar foco a eles, também faz com que possamos atuar pela arte, no social.
“Não mantemos nossos passos voltados ou para a arte, ou para o social, mas há uma simbiose entre os dois aspectos.”
Matheus Luzi – Em 20 anos neste espaço, quais feitos você destaca? Em quais momentos a companhia brilhou para além da região?
Paulo Faria – Dividiria esse período em alguns momentos. Começaria com “Um Certo Faroeste Caboclo”, que ocorreu em 1998, também servindo como uma homenagem ao Renato. Tivemos um bom apoio da mídia na época, mas ao mesmo tempo, fomos acionados por um oficial de justiça, por conta de direitos, mas tínhamos o respaldo da lei por se tratar de uma adaptação, com a canção original servindo apenas de inspiração.
Porém, as músicas do espetáculo eram inéditas, e contamos com o próprio advogado do Renato enquanto vivo, que foi assistir ao espetáculo e pode confirmar do que realmente se tratava a obra. O processo durou um ano, com grande repercussão, também tivemos muitas indicações, como o Prêmio Coca-Cola, e várias indicações individuais dos integrantes do grupo.
Depois, mais recentemente, com a grande repercussão do golpe da Presidente Dilma, tivemos o espetáculo “Curai”, que chamou muita atenção pelo nosso posicionamento através da arte. Também produzimos documentários incríveis, pautando também o aspecto da ditadura, e ali ganhamos prêmios importantes, como o Prêmio Shell, Prêmio Alesp em direitos humanos, Prêmio OAB também em direitos humanos, tudo por conta de nosso ativismo social, em uma época tão polarizada na política, onde o debate se tornou muito agressivo, e foi nesse ponto que também nos tornamos um instituto pautado em direitos humanos.
Matheus Luzi – Com toda essa experiência de “dias de luta e dias de glória”, você certamente é uma pessoa indicadíssima para comentar a atual situação das artes cênicas no nosso país.
Paulo Faria – Federalmente nem tenho como comentar, uma vez que não temos mais o Ministério da Cultura. Toda essa falta de investimentos, é demonstrado na quantidade de patrimônios que estamos perdendo, como o nosso.
A política pública está aparelhada nessa estrutura de desconstrução da arte brasileira, isso é muito triste de se observar. Aqui em São Paulo/SP, uma das maiores cidades do mundo, observamos um grande descaso também para o desenvolvimento das artes cênicas.
Eu percebo nosso abando em âmbitos municipais, estaduais e federais. Em um certo momento tivemos nomes como Erundina, Marta e Haddad com ações culturais, criando cidadania, interferindo na cidade por meio da arte, entretanto, são pontos fora da curva.
“Estamos passando também por um processo intenso de materialização. Não queremos mais depender de aluguéis, e ter a nossa sede fixa, sem que ocorram problemas como o enfrentado atualmente.”
Matheus Luzi – Apesar de tudo, vocês não desistiram da arte. Tendo isso em vista, quais os próximos passos da companhia (se é que isso já está alinhado, claro)?
Paulo Faria – Por conta de tudo o que ocorreu, até comentei um pouco na outra questão, o que posso afirmar é que agora, realmente se trata de um momento de nos assentarmos.
Ou seja, essa é a hora de escrever mais, criar projetos, passar para o papel tudo o que surge diante das dificuldades. Mesmo que em termos de ações concretas, não tenhamos tantos recursos disponíveis, a arte se cria também pelo caminho da dificuldade. Estamos plantando as sementes agora, para colher os frutos em breve.
O audiovisual ficará um pouco silenciado, finalizando nosso longa “Luz Negra”, um musical, que deverá ocorrer em março. Após esse período, focaremos na segunda temporada de nossa websérie “FOME”. Também estamos em busca de editais, querendo realizar a peça “FOME”, ocupando novos espaços, teatros novos, expandindo as questões do ativismo, arte e lutas sociais, denunciando com pensamento crítico todas as lacunas de nossa sociedade.
Estamos passando também por um processo intenso de materialização. Não queremos mais depender de aluguéis, e ter a nossa sede fixa, sem que ocorram problemas como o enfrentado atualmente.
Matheus Luzi – Sobre “FOME”, a mais atual websérie da Cia. Pessoal do Faroeste, quais seus comentários?
Paulo Faria – Essa obra, que foi baseada na Campanha Fome Zero Luz, se trata de algo realmente incrível. Trabalhamos com um grande elenco, muito empenhado, com encontros apenas online, os artistas fazendo a própria gravação.
Falar sobre a fome, sobre relações, sobre despejo, tudo isso com uma metalinguagem bem profunda, fez essa experiência ser única. Esperamos que no segundo semestre possamos trazer a segunda temporada.
“Queremos cada vez mais cuidar da fome das pessoas necessitadas. A fome tem pressa. Esse seria minha mensagem final.”
Matheus Luzi – Quais são as formas que o público pode apoiar a companhia?
Paulo Faria – Seguimos nossas lutas sociais, mas pela falta de recursos ainda estamos parados esse ano. Contamos com doações e voluntários, até para termos uma vida financeira mais saudável, podendo tocar não só esses projetos em prol da sociedade, mas também nossos projetos artísticos. Quem tiver interesse, temos uma conta pública em nosso site, e claro, nos sigam nas redes sociais.
Matheus Luzi – Aqui deixo um espaço para você dizer tudo aquilo que julgar importante.
Paulo Faria – Acho que não tenho nada a adicionar, apenas agradecer pela oportunidade. Suas perguntas foram incríveis, talvez tenha até misturados algumas respostas, mas pude tocar em todos os pontos importantes que envolvem a companhia.
Queremos cada vez mais cuidar da fome das pessoas necessitadas. A fome tem pressa. Esse seria minha mensagem final. Muito obrigado pelo espaço!