O QUARTO FURTIVO
Por Carol Costa e Silva em homenagem a Stephane Mallarmé
Pendente em sonhos como num dorso de tigre, vejo sair pela fresta de seus dentes uma mosca que se equilibra em seu minúsculo centro voador e leva consigo todo ar voante a trepidar sob seu corpo pululante. O que é uma palavra? É a figuração da vibração de suas asas dentro do meu pulmão. Sendo assim, como posso dizer a palavra voar sem que isso seja, para mim, apenas uma estimulação subjetiva, dado que eu não conheço inteiramente a sensação de voar? Meu não conhecimento sobre ela faz exatamente com que ela voe dentro de mim e, através da subjetividade dela, eu possa então, na magnitude da minha ignorância de voar, que agora me favorece, enfim dizêla. Ou seja, não é o conhecimento ou desconhecimento de uma palavra que me permite usá-la – mas a permissão de que suas asas voadoras batam sobre meus estímulos nervosos, entrelaçando o que eu sei com o que não sei, fazendo com que a trajetória de seu voo seja o de uma montanha russa dentro do quarto vazio que sou quando tudo finalmente se cala e deixa que ela se diga. Para ela, não importa se ela não se olhar no espelho antes de sair de seu casulo – importa que talvez existam muitos casulos para ela sair e entrar em outros, seja numa paz de rinoceronte seja numa pressa de menina nua que procura suas roupas jogadas no chão quando é pega no flagra pelo frio que entra pela janela esquecida aberta.
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Um batalhão de moscas que se esqueceu de onde veio entrou no quarto vazio das palavras, que acabaram de sair de seu quarto coberto por cortinas que forravam não só as janelas mas também o chão. O batalhão veio com um propósito: o de mentir em rebanho, pois sozinhas elas não conseguem formar mentiras sólidas o suficiente. Quando uma quer dizer que ama a outra, vem uma terceira e a puxa pela mão advertindo que, para dizer aquilo, ela deve dizer com todo o esquecimento que ela pode atingir para que o grau de mentira e de verdade esteja completamente descolorido e liquefeito; ela esquece então de dizer o que ia dizer até que é engolida pela palavra que tinha acabado de sair de seu quarto e que consegue ser mais esvoaçante do que um batalhão de moscas pretende ser.
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No quarto, não há nada debaixo das cortinas que cobrem o chão, o que faria com que qualquer pessoa que entrasse lá afundaria, pois se enganaria pela imagem marítima que se espalha por cima do nada horizontal. É um quarto onde leis, subordinações ou quaisquer tipo de rubricação não podem ser edificadas. Pela atmosfera do quarto, é bafejada sempre a frieza das janelas octogonais para sempre esquecidas abertas, cujo vento trás resíduos que se afundam sobre o nada engolidor; seu peso faz com que as cortinas aprofundem e lesionem fatalmente um pouco mais a alma – o chão inexistente – do quarto vernacular.
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CCS (Carol Costa e Silva) tem 29 anos e mora em São Paulo. Trabalha e estuda no Atelier do Centro, onde tem aulas com o artista visual e pensador Rubens Espírito Santo. Já escreveu um livro sobre os poemas de Rubens: Formigas famintas em fila, além de ensaios e poemas. Gerencia, há dois anos, uma micro editora no Atelier, a Vernacular, cujo portfólio pode ser visto em www.ccsvernacular.com