SETE CENTÍMETROS DE LÍNGUA. Este é o nome do novo livro da escritora alagoana Sara Albuquerque que, impulsionada a combater o silenciamento infligido às mulheres por tantos anos, decidiu escrever um livro de poemas com essa temática.
“A autocrítica, a ousadia, a vontade consciente de usar a literatura como enfrentamento das minhas questões internas, o ato político da obra fruto do seu tempo e espaço, tudo isso é muito mais fervoroso do que no passado. Talvez SETE CENTÍMETROS DE LÍNGUA contenha alguns milímetros a mais no que toca à minha subjetividade e à ação confessional, do que os livros infantis”, enfatiza a autora.
Você sentiu muito a transição da literatura infantil (que você estava acostumada) para a poesia em poemas?
Na verdade, não houve uma demarcação temporal tão exata da transição da literatura infantil para os poemas. Falo isso porque, embora os livros infantis tenham sido as minhas primeiras publicações registradas, concomitante a eles, eu já escrevia prosa (direcionada ao público jovem/adulto) e poesia. Porém, sim, eu percebo uma mudança na Sara que publicou os livros infantis para a Sara que publicou SETE CENTÍMETROS DE LÍNGUA. Este revela uma transformação pessoal no que me toca enquanto mulher: a autocrítica, a ousadia, a vontade consciente de usar a literatura como enfrentamento das minhas questões internas, o ato político da obra fruto do seu tempo e espaço, tudo isso é muito mais fervoroso do que no passado. Talvez SETE CENTÍMETROS DE LÍNGUA contenha alguns milímetros a mais no que toca à minha subjetividade e à ação confessional, do que os livros infantis. Além disso, a Sara que escreveu esses poemas já tinha tomado a decisão penosa de que queria fazer da literatura a sua profissão, em vez da advocacia, e, com certeza, assumir isso para mim mesma deu um peso grande ao livro, uma dilatação ao grito. De qualquer forma, é importante dizer que não me desapeguei da escrita da literatura infantil, cujo processo me desperta pulsações de sensibilidade. Recentemente, inclusive, tive a alegria de ter sido uma das finalistas do Prêmio Off-Flip 2018, na categoria infantojuvenil, com o livro A ESTRANHA DO PEZÃO, o qual espero ter a oportunidade de publicação em breve.
O livro parece ter muito de você nele…
O movimento para a elaboração do livro, ainda que não de forma consciente, aconteceu em passos curtos e percebo que se deu devido a um somatório de fatores. Há algum tempo, eu já acompanho grupos de sororidade entre mulheres, além de encontros de estímulos de leitura e escrita/trabalhos de autoria feminina (como o Leia Mulheres, o Mulheres que Escrevem, o Para Ler Escritoras, o Canal Sobre Elas) e dos Slams (batalhas de performances literárias), em especial o Slam das Minas SP e RS (agora também o Slam das Minas AL, iniciado recentemente pelo Ateliê Ambrosina). Envolvida, por todos os lados, nas temáticas que me faziam refletir sobre o meu estar no mundo, mas também, nesse processo de empatia, nas vivências de outras mulheres, foi natural que, num certo momento, eu buscasse a literatura para me organizar, me compreender e até mesmo me autocriticar. Foi um processo muito doloroso, por um lado, mas bastante positivo, no final das letras.
Você também usou o processo criativo do livro para se aliviar, é isso mesmo?
De certa forma, sim. Dizem que o artista vive nessa linha tênue entre a ordem e o caos e, compartilhando dessa premissa, me sinto sempre “cheia”. É como se eu me sentisse um balão prestes a explodir a qualquer tempo. O quanto de loucura pode se revelar nessa explosão, ainda não sei, porque, para evitar que esta aconteça, eu escrevo e, de alguma forma, isso me mantém ainda em equilíbrio. Ou talvez eu só pense que sim. Vai saber. Mas o fato é que vejo SETE CENTÍMETROS DE LÍNGUA como uma obra de resistência, antes de tudo. Sempre fui uma pessoa muito introspectiva e silenciosa. Tenho dificuldade de lidar com o olho no olho do público. A escrita é a minha melhor forma de expressão. Inclusive, utilizei-me dela para lidar com as violências físicas e psicológicas que sofri no passado, na tentativa de ajudar também outras mulheres. Escrever sobre isso é uma forma de afirmar: passei por isso, sobrevivi e não preciso ter vergonha – friso isso porque muitas de nós nos mantemos num ciclo vicioso de auto-culpabilização, presas naquela ideia equivocada de “a vítima tem alguma culpa pela violência que sofreu”.
Fale um pouco sobre a temática do livro.
Chamo esse livro de “grito de poemas”, com o objetivo de fazer um contraponto ao silenciamento infligido a nós, mulheres, por tantos anos. É um berro de alívio/desespero/chamamento de uma voz lírica que busca se evadir a um estereótipo moralista lhe imposto tão somente pela condição de gênero, que pretende refletir sobre questões de padrão estético difundidas na sociedade, de aceitação do corpo, de sororidade e, principalmente, reiterar a denúncia da violência desenfreada que nos acomete todos os dias.
Apesar do livro tratar de assuntos femininos, ele também é direcionado para qualquer público, por quê?
O que seriam assuntos femininos?, eu me pergunto. Muito dessa divisão “feminino” e “masculino” carrega estereótipos culturais e esses, muitas vezes, provêm de uma visão machista e a reforça. Exatamente visando a essa quebra de padrões impostos ao que “é/como deve ser a mulher” que, na dedicatória do livro, coloquei “a todas e todos que pensam, logo, podem se mudar dos caducos pensamentos”. Não é um livro para mulheres, somente. É um grito para ser ouvido/lido por quaisquer pessoas dispostas a saírem da zona do “é assim mesmo” e permitirem se inquietar os neurônios, a voz e, quem sabe, o gesto.
Tem alguma história ou curiosidade interessante que envolva o livro?
O SETE CENTÍMETROS DE LÍNGUA tem um curiosidade peculiar: surgiu embrionário durante o primeiro ano do Mestrado em Escrita Criativa (2017), na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Não foi algo planejado desde o início. Devido à construção da personagem central da novela “Tina”, trabalho que desenvolvo no Mestrado, passei a me aprofundar nas reflexões sobre a condição da mulher na sociedade. A forma como arranjei de lidar com toda essa pesquisa, que me enchia constantemente de inquietações, resultou nos poemas. Um a um, foram escritos em tempos diferentes. Só depois, percebendo uma linha central entre eles, resolvi reuni-los como livro.
A ideia era guardá-lo na gaveta por mais tempo, amadurecê-lo. Mas surgiu a oportunidade de publicação pela Editora Patuá, por meio da chamada de originais de novembro/2017, e pensei “por que não?”. No fundo mesmo, sinto que poderia ter levantado várias outras temáticas para reflexão, pois são tantos os silêncios ainda. Por outro lado, sei que são vinte e sete anos calando e sobrevivendo ao machismo todo-não-santo-dia. Logo, um grito apenas não seria suficiente. Talvez esse seja o primeiro de muitos.