13 de fevereiro de 2025

“IML”, de Brendow H. Godoi [CONTO]

Os caras eram tarados num defunto. Eurípedes, Joabe e Marcelino. Nós quatro éramos responsáveis por dar conta dos cadáveres que chegavam ao IML. Os presuntos vinham direto da cena de crime, ou do acidente ou do hospital ou seja lá qual tenha sido o local da morte. Chegavam ainda quentes. Uns até trepidavam os músculos de tão frescos. A vida teima pra não ir embora. Foi lá que vi. Juro. Tinha defunto que chegava tremendo. Mexia perna, retesava a boca, a testa. Coisa absurda.

Fiquei pouco tempo no IML. Não tive estômago. E também, graças a Deus, apareceu esse emprego de porteiro. Hoje só trabalho com gente viva. “Bom dia”. Na maioria das vezes, não respondem meus cumprimentos. Nesse ponto, tenho saudade dos corpos do Instituto. O silêncio dos mortos me assustava menos.

Os caras comiam os defuntos. Na verdade, as defuntas. Quando vi, não acreditei. Eurípedes era o mais velho de casa. Me disse:

— Tenta aqui, novato. Tá quentinha. Bateu as botas não tem nem quinze minutos. Overdose de droga. Vinte aninhos.

A defunta era uma moça loira, muito, mas muito bonita. Estava na maca de triagem. O Eurípedes tava por cima dela. Metendo, bombando. “Nem precisou cuspir pra entrar. Tá jóia. Fresca que só”.

Joabe e Marcelino estavam na fila. Havia uma hierarquia ali. Eurípedes sempre era o primeiro. Os outros dois tiravam no cara ou coroa pra decidir a vez. Joabe tinha ganhado naquela.

— Tem certeza que vai perder essa, novato?

— Cara, a moça tá morta. Vocês são doidos? Que porra é essa?

— Ih, alá. O novato tá de onda. Ô novato, se tu abrir a boca, já sabe né? Tudo bem não apreciar a coisa, mas se caguetar, você vem parar aqui.

Eurípedes me ameaçou. Dei as costas. Saí à procura de um banheiro. Eu precisava vomitar.

Eles molestavam todos os corpos que chegavam ao IML. Não havia escrúpulos. Morto com a cabeça estourada de tiro, morto sem braço, morto furado de faca, morto serrado no meio. Teve uma vez que chegou um presunto com as tripas pra fora. O estômago tava aberto até a entrada da virilha, bem pra baixo do umbigo. Eurípedes foi à loucura: “Caralho, quase dá pra ver a cabeça do meu pau. Olha só!”

Ele terminou de rasgar o defunto. Pegou uma faca e abriu até o clitóris. O pau dele aparecia e sumia, sumia e aparecia. Era uma senhora gorda. Velha, já. Os caras riram. O cadáver ficou amarelo, amarelo, amarelo.

O corpo de um fulano precisava vir de uma cidade vizinha que não tinha IML. Eurípedes foi encarregado de fazer o traslado do defunto. Partiu numa sexta feira. Mas era tempo de chuva, estrada ruim. E pra piorar, o acesso da tal cidade estava bloqueado. A ponte tinha caído. A previsão de volta era na segunda-feira.

— Vocês vão fazer a festa na minha ausência, seus putos.

— Até segunda, o manda-chuva sou eu — Joabe brincou.

— Arrebenta aí por mim. Me honra. Segunda eu tô de volta.

Eurípedes era um maníaco. Necrófilo filho da puta. Que desgraça de emprego era aquele. Que manicômio.

Esperamos do lado de fora. Eurípedes arrancou com o rabecão do IML. Pelo retrovisor, pude ver o sorriso costurado na boca dele. Maldito.

Era fim de semana de plantão. Pior merda pra trabalhar. Os defuntos mais feios chegavam nos sábados e domingos. Geralmente eram vítimas de assassinato, atropelamento, acidente de trânsito. Uns chegavam dentro de uma lata. Viravam uma pasta vermelha. Só dava pra arrancar do asfalto na pá. Grudavam as vísceras igual chiclete.

Mas naquele domingo, chegou uma mocinha. Fui eu que atendi. A ficha dizia que ela tinha dezoito anos recém-completados. “Rafaela Resende, 18 anos. Causa mortis: desconhecida”.

Estava intacta. Pele branca, cabelos acastanhados. Parecia sorrir. Um anjo morto, sorridente. Eternamente adormecida no colo da morte. Tantos sonhos no chão, tantos amores, tantas explosões. Triste.

Levei-a para a geladeira. Mas não adiantou muito. Quando a viram, Joabe e Marcelino endoideceram. Vieram pra cima de pau duro. Dois sado-canibais nojentos. Não pude fazer nada.

— Pô, deixa a menina em paz. Ela não, ela não.

— Sai da frente, novato. Você não manda porra nenhuma aqui.

Marcelino me acertou um murro na boca. Tonteei. Pensei em revidar, mas Joabe estava com a faca das autópsias na mão. “Some daqui, filho da puta. Caça teu rumo”.

Fui pra recepção, desolado. Conseguia ouvir o barulho da maca balançando, batendo na parede. Ouvi urros animalescos. As luzes piscaram. Comecei a escrever a minha carta de demissão.

A porta principal abriu num estouro. Era Eurípedes, esbaforido e de olhos arregalados, rodando desnorteado. Não sabia se localizar direito. Ficou girando com os braços esticados e as mãos espalmadas. Uma espécie de estado de defesa. Ou ataque, sei lá. Um estado de profundo horror.

Tentei ajudar:

— Eurípedes, você tá bem? Por que antecipou a volta? Você quer uma água?

— Cadê, cadê. CADÊ?

— Cadê o quê?

— A moça. Cadê?

— A mocinha? Rafaela?

— Cadê, cadê? — ele fez que sim com a cabeça.

— Lá dentro, sendo estuprada.

Eu só entendi quando ele atravessou a recepção gritando: “É MINHA FILHA, É MINHA FILHA!”

Rafaela era a caçula do Eurípedes. Alguém telefonou avisando da morte e ele voltou desesperado. Pela fresta da porta entreaberta eu vi Eurípedes chorando sobre o cadáver da filha morta. Ela estava de bruços, pernas abertas em V.

CONTO DE BRENDOW H. GODOI

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