Foi com a vitória do Prêmio Braskem Cultura e Arte, da Fundação Casa de Jorge Amado, que Victor Mascarenhas iniciou sua carreira na literatura. No prefácio, a obra de estreia foi comentada pelo músico e escritor Fausto Fawcett: “Os doze contos de ‘Cafeína’ são um passeio dantesco por vidinhas que andam em círculos de imobilidade mental, social, sentimental… Victor sabe muito bem derramar sal na ferida das vidas vazias”.
Três anos após, Victor lançou o livro “A insuportável família feliz”, no mesmo ano em que foi finalista do Prêmio OFF Flip de Literatura. Já em 2013, um dos contos desta obra foi adaptado para história em quadrinhos, com ilustrações do mineiro Cau Gomez, e a história com nome de Billy Jackson foi indicado como um dos melhores do ano pelo site Universo HQ. Na época, Victor também lançou a novela “Xing Ling”.
Dois anos depois, Victor reuniu textos premiados e publicados em antologias, sites e jornais literários Brasil afora, em seu novo livro “Um certo mal-estar”. Sobre o trabalho, o antropólogo e escritor Antonio Risério escreveu: “Victor se revela um escritor cada vez mais consistente e imaginativo. E, ao contrário de nossos lamentáveis ‘contistas filosóficos’, sublispectorianos, ele não só tem o que contar, como sabe fazê-lo muito bem”.
Nos mais recentes anos, Victor se divide entre a literatura e o audiovisual. Ainda em produção, Victor está se empenhando no longa-metragem “Tonho”, em parceria com o cineasta francês Bernard Attal, além de estar desenvolvendo uma série para TV, com base em um de seus contos, para a Turner Internacional. Em 2019, realizou várias oficinas literárias em diferentes estados brasileiros e lançou o livro “O som do tempo passando”, o primeiro lançamento de seu próprio selo.
Matheus Luzi – Alguns comentários sobre sua obra remetem ao fato de você ser um “bom imaginador”. O que você tem a dizer do papel da imaginação na literatura, e na arte como um todo?
Victor Mascarenhas – Uma vez ouvi uma frase de um desses velhinhos contadores de causos que define bem a importância da imaginação no ofício do escritor: “Não importa se é verdade ou mentira, o que importa é se a história é boa”. E é por aí que eu vou, já que o que mais gosto de fazer como escritor é contar uma boa história. Por isso, tento aproveitar ao máximo a liberdade que a literatura oferece para conseguir contar a melhor história possível e, dependendo do argumento e do universo da história que estou escrevendo, não economizo minha imaginação. Acho que ela é uma das forças motora de qualquer forma de arte, mas precisa ser alimentada para se desenvolver e gerar ideias. Se a gente não lê, vê filmes, ouve música, contempla obras de arte, conversa com as pessoas e não anda com as antenas ligadas e os receptores abertos por aí, nossa imaginação vai minguando e a gente começa a se repetir, apelar para fórmulas e a qualidade do trabalho tende a cair. A imaginação não é importante só para a literatura, é importante para o trabalho, para a politica, para as relações pessoais, pra tudo. Acho que o mundo anda precisando de mais imaginação no poder.
Matheus Luzi – Como são seus momentos de criação?
Victor Mascarenhas – Não sei definir bem quais são meus momentos de criação. Por ofício e hábito, ando sempre atento a tudo porque das situações mais banais pode surgir uma ideia para uma história, um personagem, um diálogo ou uma conexão com algum outro assunto qualquer. Não acredito muito numa inspiração divina soprada por uma musa qualquer. Se nossa mente não for um terreno fértil e bem adubado, não vai sair uma ideia genial do nada. Posso falar melhor dos momentos de trabalho, que começam quando pego as ideias que estão maturando na minha cabeça ou anotadas em bloquinhos e pedaços de papel, e acho que dá pra começar a escrever alguma coisa. A partir daí, quando estou no processo de escrever, tento trabalhar todos os dias, nem que seja para revisar o texto e fazer pequenos ajustes nos dias menos produtivos ou para longas jornadas quando a coisa engrena.
“A imaginação não é importante só para a literatura, é importante para o trabalho, para a politica, para as relações pessoais, pra tudo. Acho que o mundo anda precisando de mais imaginação no poder.”
Matheus Luzi – Sua carreira literária começou em 2008. O que você tem aprendido desde então? Qual foram as evoluções na sua trajetória?
Victor Mascarenhas – Meu primeiro livro, “Cafeína”, foi lançado em 2008, como resultado de um prêmio para autores inéditos da Fundação Casa de Jorge Amado, em Salvador. Mas ele não foi concebido originalmente como um livro. Na verdade, eram contos que eu escrevia e guardava, sem saber muito o quê fazer com eles. Para participar do prêmio, selecionei alguns que tinham um mesmo conceito e alguma unidade e surgiu o “Cafeína”, que disparou para muitos lados, com estilos diferentes e experiências típicas de quem está começando. Mas isso foi muito bom porque pude perceber o que funcionava melhor no meu trabalho, que tipo de narrativa era mais interessante e eficiente para dizer o que eu queria dizer como autor. A partir do segundo livro, “A insuportável família feliz” (2011), acho que fui encontrando meu estilo e isso vem se consolidando a cada livro com meu amadurecimento como escritor. Em 2013, veio minha primeira novela, “Xing LIng”, onde arrisquei uma narrativa mais longa e um gênero novo, uma distopia farsesca num futuro próxima onde uma empresa chinesa comprava cidades para fazer parques temáticos. Nesse livro, me afastei dos contos urbanos, focados nos personagens e seus dramas pessoais e fui pra uma alegoria delirante para falar sobre questões políticas, culturais e sociológicas. Em 2015, volto aos contos com “Um certo mal-estar” e de uma das histórias desse livro nasceu o romance “O som do tempo passando” (2019) que é meu trabalho mais recente. O que percebo nessa trajetória é que meus livros hoje são mais bem planejados, têm mais técnica e mais espaço para reflexão, em detrimento da ação que muitas vezes era vertiginosa demais no início. Na literatura a gente sempre está aprendendo, como escritor e como leitor.
Matheus Luzi – Qual seria suas reflexões acerca da vida artística no Brasil? Quais os desafios dos escritores?
Victor Mascarenhas – O principal desafio do escritor segue sendo o mesmo de sempre: ser lido. Se isso sempre foi difícil, hoje, com a imensa quantidade de livros sendo lançados e com a gigantesca oferta de conteúdo em todas as plataformas possíveis, o desafio aumentou exponencialmente. Além disso, a literatura, ao contrário da música, por exemplo, que você põe pra tocar e ouve enquanto dirige, almoça ou lava a louça, exige concentração e dedicação das pessoas por um longo período. Como conseguir isso com seu celular ali do lado com todas as possibilidades que ele oferece? Outro enorme desafio para o autor é a sobrevivência, já que viver de literatura é praticamente impossível e o escritor tem que se desdobrar em outras atividades para conseguir seguir escrevendo. Ainda tem as questões de mercado, como distribuição, remuneração e divulgação, que são muito complicadas. E tudo isso num país que vive uma onda de patrulhamento ideológico de todo lado, com um governo avesso a cultura e as duas maiores redes de livrarias em recuperação judicial. Continuar escrevendo com tudo isso e nesse cenário é um grande desafio, de fato. Mas se fosse fácil não tinha graça.
“A vida do escritor é meio solitária. A gente lança o livro, mas não sabe quem leu e nem consegue sentir a recepção imediata do público.”
Matheus Luzi – Com que face você encara suas obras e sua vida na literatura?
Victor Mascarenhas – A literatura é algo que sempre fez parte da minha vida. Sempre li bastante e desde criança gostava de contar histórias. Inicialmente, escrevia e desenhava histórias em quadrinhos em cadernos escolares, daí passei a escrever contos. Depois fiz faculdade de comunicação e passei a trabalhar como redator publicitário e roteirista de TV e cinema. Conto essa trajetória para dizer que escrever é algo natural para mim, como deve ser natural para um médico atender um paciente ou para um contador fazer a declaração de imposto de renda de um cliente. Esse é o meu trabalho e exerço esse ofício naturalmente. Claro que lançar livros, dar entrevistas, participar de eventos literários e toda exposição que a carreira de escritor pode trazer são algo que parece glamoroso ou estimulante, mas quando a gente percebe que isso é parte do serviço, vira algo natural também. Sobre a maneira que encaro minhas obras, acho que encaro com a satisfação de quem fez um trabalho honesto e com a intenção de fazer o melhor possível. Claro que aqui e ali, se pudesse, mudaria umas coisas, cortaria outras ou reescreveria algo, mas no dia que eu achar que escrevi um livro tão perfeito que não precise de nenhum reparo, é melhor parar de escrever porque me transformei num autor autoindulgente.
Matheus Luzi – Além da literatura, quais suas outras atividades?
Victor Mascarenhas – literatura oferece outras possibilidades além de escrever livros, como a participação em eventos literários ou projetos que surgem através da literatura. Nesse ultimo ano, por exemplo, participei do circuito Arte da Palavra, do SESC, dando oficinas literárias em Salvador, Campo Grande (MS), Corumbá (MS), Jaraguá do Sul (SC) e Joinville (SC). Também em 2019, trabalhei no desenvolvimento de uma série para a Turner (dona dos canais TNT, Space e outros) baseada num dos contos do meu livro “A insuportável família feliz”. Além disso, lancei “O som do tempo passando”, primeiro livro do meu selo, o Cafeína Produção de Conteúdo, que pretendo consolidar para publicar outros autores e meus próximos livros. E tudo isso em paralelo com outras atividades, sempre escrevendo, na área de comunicação e do audiovisual.
Eis aqui um trailer do livro “O som do tempo passando”
Matheus Luzi – Dentre suas obras, qual seria aquela que mais te da “tesão”?
Victor Mascarenhas – O trabalho mais recente sempre é o que dá mais tesão. No meu caso, estou nessa fase com “O som do tempo passando”, que saiu em outubro de 2019. Mas o tesão não vem só dele ser o livro mais recente. “O som do tempo passando” é o primeiro projeto do meu selo, o Cafeína Produção de Conteúdo, e foi a primeira vez que tive controle total sobre todas as etapas, da capa às estratégias de distribuição e comercialização. É muito bom ter essa autonomia e, por enquanto, estou bastante satisfeito. Inclusive, vou aproveitar a oportunidade pra vender meu peixe: quem quiser ler “O som do tempo passando”, é só acessar https://literaturacomcafeina.blogspot.com/ e comprar o seu exemplar.
Matheus Luzi – Comente sobre seu novo livro, “O som do tempo passando”.
Victor Mascarenhas – “O som do tempo passando” é um romance sobre a geração que chegou à adolescência no final da ditadura e que hoje está chegando à meia idade. Pra contar essa história, conto a trajetória de uma banda de rock amadora, formada por quatro adolescentes dos anos 1980, e o reencontro dos seus integrantes 30 anos depois. A escolha da banda de rock veio do fato que naquela época, o rock brasileiro dominava a cena musical e foi a trilha sonora da redemocratização. Era um tempo em tudo parecia muito promissor com a volta da democracia e a ascensão de uma geração de jovens com liberdade plena. Parecia mesmo que a gente teria um futuro grandioso, mas a gente sabe que não foi bem assim e a Geração Coca-Cola, que achava que ia mudar o mundo, perdeu o gás e o Brasil não se transformou no que poderia ter sido. O livro é sobre o que a gente sonhava ser e o que nos tornamos. Conto essa história através dos quatro integrantes da banda, tanto no presente quanto no passado, alternando os narradores e pontos de vista durante o livro. Outra coisa que está muito presente na narrativa são referências da cultura pop e históricas, que vão situando o leitor e o levando para dentro do universo do livro. Muita gente que leu, sobretudo os que já passaram dos 40, tem dito que se identifica muito com os personagens e os mais jovens dizem que estão entendendo melhor os seus pais depois de ler o livro. Uma boa surpresa que tive foram mensagens, através das redes sociais, de alguns rockstars da época querendo ler o livro. Espero que gostem.
Matheus Luzi – Sinta-se a vontade para contar alguma curiosidade ou história sobre sua arte e vida.
Victor Mascarenhas – A vida do escritor é meio solitária. A gente lança o livro, mas não sabe quem leu e nem consegue sentir a recepção imediata do público. Por isso, vota e meia me surpreendo com as reações dos leitores. No meu livro “A insuportável família feliz” tem um conto sobre um homem que faz cover de Michael Jackson. Esse conto depois virou uma graphic novel, adaptada por mim e desenhada por Cau Gomes, chamada “Billy Jackson”. Na história, narro um episódio em que o Billy Jackson vai para o Pelourinho, em Salvador, assistir a gravação do clipe de Michael Jackson e participa de uma verdadeira batalha campal entre dezenas de covers de Michael Jackson, com direito a quebra-quebra, policia e tudo. Essa batalha dos covers nunca existiu, é pura ficção, mas vários leitores já disseram que lembram da história, “viram no Fantástico” ou até que estavam presentes na hora. Outra história engraçada foi quando um jornalista me procurou para fazer uma matéria sobre literatura fantástica e sobre a importância de Harry Potter na popularização do gênero. Eu tinha acabado de lançar o “Xing LIng” e expliquei que meu livro podia até ser considerado uma distopia, mas não era literatura fantástica. Ele insistiu e me entrevistou mesmo assim, quis saber minhas referências – lembro que falei de Aldous Huxley, George Orwell e Ray Bradbury – e perguntou sobre o bruxinho de J.K Rowling. Respondi que não tinha lido nada, mas que achava importante por ter estimulado milhões de jovens a ler e que isso certamente ajudaria na formação de novos leitores. Quando saiu a matéria, o cara publicou minha entrevista e no fim arrematou com algo mais ou menos assim: “O autor nega, mas Harry Potter foi fundamental na sua carreira”. O detalhe é que até hoje continuo sem ter lido nenhum dos livros de Harry Potter. Conto essa duas histórias para exemplificar como uma obra pode gerar leituras e reações absolutamente inusitadas, o que é ótimo.