Vitor Guima é aqueles artistas que não se contentam em atuar em apenas um nicho da arte. Ele é músico, cineasta e escritor. Em 2019, fez sua estreia na música com o disco “O Estrangeiro”. O trabalho que reúne nove canções autorais (a maioria em parceria com outros compositores), teve seu merecido reconhecimento na mídia especializada, sendo que alguns jornalistas o citaram como “promessa da MPB”.
Porém, chegou o momento para Vitor de estrear oficialmente na literatura, objeto de atuação do artista de longa data, principalmente com a poesia. Neste ano, o público de Guima poderá conhecer seu lado escritor, com o lançamento do livro “A Morte da Graça no Baile dos Erros” (Editora Urutau).
“Comecei a escrever muito jovem algumas histórias curtas, entediado com as aulas quando ainda estava no ensino fundamental, lá pelos 9 anos”, relembra Guima. “Por me alternar entre a literatura, a música e o cinema, me considero antes de tudo um escritor, seja de poemas, contos, roteiros, romances ou canções.”
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Matheus Luzi – Vítor, a primeira pergunta que faço é: de uma maneira geral, para você, qual a relação da música e da literatura, e, em especial, da poesia?
Vitor Guima – Para mim essa relação entre a poesia e a música é inerente. Sou um leitor voraz de poesia e tenho a obsessão de tentar criar letras que funcionem, também, desta maneira. Sempre que termino uma canção eu fico lendo sua letra por vezes e mais vezes como se fosse um poema e não a considero concluída caso eu não acredite que ela funcione assim. Na poesia, por sua vez, o ritmo é essencial. Mesmo em poemas que não contam com uma métrica ou rimas, o ritmo – ou musicalidade, por assim dizer – é um de seus elementos mais importantes.
Matheus Luzi – E na sua carreira, na sua arte, qual seria a ponte entre ambas formas de arte?
Vitor Guima – Eu me considero antes de tudo (ou acima de tudo) um escritor. Seja de poemas, contos, romances, roteiros ou canções, o que eu mais gosto é de escrever. E na minha vida, o que veio antes de tudo foi a literatura. Lá pelo início do ensino fundamental, acho que eu tinha uns 8 ou 9 anos de idade, eu ficava inventando e rabiscando pequenas histórias durante as aulas e, com maior ou menor intensidade, esse hábito de escrever nunca parou (mesmo que ele estivesse mais voltado para a música ou o cinema e não a literatura propriamente dita em alguns momentos). Foi também essa a época em que comecei a ler bastante. A escola onde estudava tinha uma biblioteca enorme com livros bem antigos e eu não me lembro se tinha um limite de livros ou se eu estava querendo ler obras para outra faixa etária, mas minha professora tinha que toda semana me autorizar a pegar os livros que queria e ela sempre fazia uma careta quando eu a procurava no intervalo para isso. Até que um dia minha mãe assinou uma declaração que eu estava autorizado a pegar qualquer livro e não tive mais esse problema. Aí foi um deleite… Quanto a essa ponte entre as artes, eu creio que na minha música as influências literárias são tão grandes quanto as musicais. O nome do meu disco de estreia é “O Estrangeiro” por causa do romance do Camus, tem canções influenciadas por Fernando Pessoa, Tennessee Williams, Charles Baudelaire… E duas das faixas do disco são poemas musicados. “Coração na Cabine”, de Paulo César de Carvalho, e “Movimento”, de Paulo Felisberto. Na via reversa – e já colocando o cinema também no meio – nesse livro tem poemas com inspiração em filmes como “Blow-Up” (1966; dir. Michelangelo Antonioni) e “Asas do Desejo” (1987; dir. Wim Wenders), um poema dedicado ao compositor soviético Viktor Tsoi, da banda Kino, e um dedicado ao cineasta armênio/soviético Sergei Parajanov, por exemplo. Para mim essas três formas de arte (literatura, música e cinema) estão completamente interligadas.
“Quanto ao impacto no público, eu acredito, assim como o poeta Joseph Brodsky, que uma obra de arte – mas especialmente a literatura e a poesia em específico – fala diretamente com a pessoa em questão, e que a relação entre escritor e leitor não tem nenhum intermediário. Em um paralelo, eu costumo dizer que uma sala de cinema, de concerto ou estádios lotados para um show são templos. […]”
Matheus Luzi – Este que é o seu primeiro livro, aborda qual temática? E como você trabalha ela em seu processo criativo?
Vitor Guima – O tema principal do livro é a construção da memória. O eu-lírico desse livro percorre alguns lugares e trajetos que estão cercados de pequenas e grandes mortes tentando entender o que, de grão em grão, pode se formar ou se esfacelar na memória. Quando uni os poemas que formariam o livro, fui notando e entendendo melhor essa temática e acabei escrevendo mais alguns poemas que coubessem nessa proposta. Esse tema me é muito caro porque creio que estou sempre ressignificando situações que vivi no passado, tentando entendê-las melhor e buscando não deixar que algumas lembranças tão valiosas se percam.
Matheus Luzi – Por quê você escolheu esses três poemas para anunciar o livro? O que elas representam?
Vitor Guima – Quando os enviei para a Revista Mallarmargens, tentei escolher três poemas que sintetizassem o tema do livro. “Sombras e Fogo” é um tributo a Sergei Parajanov, um dos meus cineastas favoritos, que sofreu absurdamente com a censura. É um lembrete de que a repressão sempre esteve e sempre estará pairando sobre nós, mas que nunca a aceitaremos. “Yumi”, por sua vez, é um mergulho poético em imagens e experiências que nos fazem tentar entender o presente. E “Os Espelhos” trata um tanto desses trajetos, com esses inúmeros reflexos e fantasmas que encontramos pela estrada e pelos labirintos, mas que podem estar a apenas uma fagulha da extinção.
Matheus Luzi – Pelo que vi, sua poesia é bastante metafórica e existencial. Qual o impacto disso no público, e até mesmo em você?
Vitor Guima – Eu acredito que os poemas presentes nesse livro trazem cenários comuns a muitas pessoas. Ao meu ver ele tem uma ambientação um tanto característica da modernidade, nesse tempo ultraveloz e absolutamente conectado. Como disse o poeta Pedro Spigolon, que editou o livro, a poética dessa obra advém da mistura de alguns elementos cotidianos com experiências ligadas à fugacidade. Enquanto alguns buscam o concreto, eu enxergo espelhos em três ou quatro paredes e cabeças desenhando cílios como para-brisas. Mais uma vez citando o Pedro, o livro não tem um tom confessional ou lamurioso, mas inventa imagens com um tom de encantamento e ficção partindo da linguagem poética. Quanto ao impacto no público, eu acredito, assim como o poeta Joseph Brodsky, que uma obra de arte – mas especialmente a literatura e a poesia em específico – fala diretamente com a pessoa em questão, e que a relação entre escritor e leitor não tem nenhum intermediário. Em um paralelo, eu costumo dizer que uma sala de cinema, de concerto ou estádios lotados para um show são templos. São lugares que isolam um grupo de espectadores junto de uma obra em questão. Porém, em uma relação entre escritor e leitor, primeiro que essa relação é de um para um (de um escritor para um leitor, e não de um grupo de espectadores para uma obra), e segundo que esse templo é qualquer lugar em que um livro esteja aberto. No ônibus, quarto, praças, salas de espera, cafés… Ao meu ver essa relação da literatura (mas especialmente da poesia) com o leitor, é a mais íntima dentre as formas de arte.
“Para mim essas três formas de arte (literatura, música e cinema) estão completamente interligadas”
Matheus Luzi – Ainda nesta pergunta, você acredita que as metáforas são importantes para o “livre arbítrio das interpretações” e até mesmo a subjetividade da sua mensagem?
Vitor Guima – Absolutamente. Em alguns momentos as imagens e até a quebra dos versos foram trabalhados justamente para priorizar essa subjetividade. Uma vez assisti a uma conversa entre os escritores Luiz Ruffato e João Anzanello Carrascoza – dois dos meus autores contemporâneos favoritos, e o Ruffato disse que um de seus maiores medos é um dia saber que todos os seus leitores acham que seu livro trata da mesma coisa. Eu tenho esse mesmíssimo medo com as obras que produzo. Para mim a subjetividade é essencial e as metáforas têm um papel fundamental nisso. E, já que citei Carrascoza e Ruffato, recomendo absurdamente os livros “Caderno de um Ausente” e “Aos 7 e aos 40”, do Carrascoza, e “Eles Eram Muitos Cavalos”, do Ruffato.
Matheus Luzi – Desde quando você usa a poesia e a literatura como forma de expressão?
Vitor Guima – Comecei com essas pequenas histórias lá pelos 8 ou 9 anos de idade, e a escrever poemas lá pelos 15 ou 16, mais ou menos na época em que também comecei a escrever minhas primeiras canções.
Matheus Luzi – E porque só agora você investiu neste primeiro lançamento?
Vitor Guima – Todo o processo de publicação de um livro é bastante complexo, passando pela parte de edição, diagramação, design até a impressão e distribuição, e eu nunca fiz ideia de como fazer algo dentro desse processo que não fosse escrever o livro. No início do ano passado fiquei sabendo que a editora Urutau estava recebendo originais e trabalhei com bastante afinco nos poemas que já vinha escrevendo há alguns anos e escrevi novos dentro da proposta do livro. Alguns meses depois me enviaram uma mensagem dizendo que meu livro havia sido selecionado para publicação. Eu nunca vou me esquecer da alegria desse dia em que fiquei sabendo que meus versos seriam impressos. E mesmo tendo demorado tantos anos desde que comecei, creio que foi o momento certo para ele ser publicado. Foi quando parei – e tive maturidade – para analisar meus escritos antigos e pude organizar, demolir, reescrever, dividir e reconstruir um a um esses poemas, além de escrever novos.
“Uma vez assisti a uma conversa entre os escritores Luiz Ruffato e João Anzanello Carrascoza – dois dos meus autores contemporâneos favoritos, e o Ruffato disse que um de seus maiores medos é um dia saber que todos os seus leitores acham que seu livro trata da mesma coisa. Eu tenho esse mesmíssimo medo com as obras que produzo. Para mim a subjetividade é essencial e as metáforas têm um papel fundamental nisso.”
Matheus Luzi – Certamente você tem história(s) e curiosidade(s) para nos contar sobre sua arte.
Vitor Guima – Não sei se serve como curiosidade, mas esses contos e poemas que escrevi na infância e adolescência se perderam todos. Eu lembro vividamente da capa dos cadernos em que escrevia, mas não faço a menor ideia de onde eles estão. Talvez tenham ficado na casa em que eu morava na época e que posteriormente foi demolida. Eu adoraria ler esses textos hoje apesar de ter certeza que não conseguiria decifrar o que está escrito porque minha letra sempre foi horrenda.
Matheus Luzi – Agora é o momento que te deixo livre para dizer algo que eu não perguntei e que você gostaria de ter dito.
Vitor Guima – Eu agradeço por mais uma vez ser recebido pela Revista Arte Brasileira e peço aos leitores que me acompanhem no Instagram (@ovitorguima) e Facebook (www.facebook.com/ovitorguima) para saber mais detalhes do lançamento do livro, dos meus filmes e dos videoclipes e faixa inédita que lançarei neste ano.