A música, diz a lógica, é um retrato da realidade de um povo. É expressão de sentimentos de um compositor, mas também expressa as coisas da vida. Portanto, a música brasileira (queira ou não) retrata o nosso país, nossos anseios, nossas dificuldades, etc. É assim que o machismo entra em cena no cenário artístico, embora, muitas das vezes, seja tão difícil encontrá-lo em nossa música brasileira. Esta fotografia da MPB, um lado oculto (as vezes, nem tanto), é o alvo de um grupo de cinco mulheres empenhadas em abrir os olhos da sociedade quanto à este assunto.
Juntas, elas formaram em 2017 o projeto MMPB (Música Machista Popular Brasileira). Hoje com um site e páginas nas redes sociais, o MMPB já tem exposto um número significativo de canções que, em graus diferentes de intensidade, são baseadas em princípios machistas. Muitas destas canções passam despercebidas por nossos olhares, e é justamente aí que entra o trabalho clínico do projeto: investigar, analisar e expor o machismo impregnado em canções brasileiras.
Eu, Matheus Luzi, editor da Arte Brasileira, entrevistei uma das fundadoras do MMPB, Lilian. Ela nos conta alguns detalhes importantes e interessantes sobre o assunto. Boa leitura!
Matheus Luzi – Para começar, uma pergunta óbvia, mas necessária: como surgiu o MMPB e como o projeto se desenrolou para chegar ao que é hoje?
Lilian (ADM do MMPB) – O projeto começou em meados de 2017, quando eu e algumas amigas de profissão (Rossi Antunez, Carol Tod, Natália Ehl e Joana Mendes) dividimos a vontade de fazer um projeto pessoal. Enquanto publicitárias, sentíamos falta de poder usar nosso potencial criativo para desenvolver algo 100% nosso, sem agências ou marcas envolvidas. Perto desse período estourou a polêmica com a música “Só Surubinha de Leve”, uma música que fazia apologia ao estupro, e foi a partir daí que o MMPB foi tomando forma. Resolvemos ampliar a busca e nos deparamos com uma infinidade de músicas problemáticas de todos os gêneros possíveis. Então, resolvemos montar um site que funcionasse como um banco de dados, trazendo as músicas machistas e breves explicações sobre as problemáticas da canção.
Matheus Luzi – Quais caminhos vocês percorrem para chegar até as músicas denunciadas? Enfim, como vocês chegam até elas? São sugestões, pesquisas, o acaso?
Lilian – No início a busca era no braço mesmo e na pesquisa com parentes e amigos. Com o passar do tempo, depois do lançamento do site, começamos a receber sugestões diretamente e recebemos até hoje. Daí focamos em analisar as sugestões que chegam e entender com pesquisa como explicar para as pessoas de uma maneira simples os motivos pelos quais aquela música “merece” estar no MMPB.
Matheus Luzi – O MMPB constatou em suas pesquisas alguma tendência mais acentuada de machismo em alguma época, gênero musical, artista, álbum específicos?
Lilian – O machismo é estrutural, então ele está presente em todas as épocas e em todos os gêneros musicais que analisamos – um claro reflexo da nossa sociedade. Mas percebemos uma ligação entre os avanços dos direitos femininos e a forma que o machismo foi sendo colocado nas letras. Se antigamente era muito comum encontrar letras com apologia a violência física à mulher (décadas de 40, 50) isso foi sumindo com o passar do tempo. Depois, com a libertação sexual feminina, ficou mais comum ver músicas que fazem juízo de valor das mulheres que escolhem como querem viver. Hoje, o que mais se vê são letras que trazem o machismo por entrelinhas, músicas que romantizam relacionamentos abusivos, controle em excesso, entre outros – e isso é extremamente perigoso.
Acreditamos ser importante que os artistas/compositores entendam a sua responsabilidade: uma obra não só pode ofender pessoas como também ajudar a moldar o pensamento de uma multidão. A música tem um impacto direto na sociedade, não é única culpada e não faz a agressão girar somente, mas ajuda a moldar o imaginário cultural também.
Lilian, ADM do MMPB
Matheus Luzi – Há uma grande discordância a respeito de modificações de músicas (e obras em geral) quando nelas há conteúdos de machismo, racismo, etc. Neste sentido, vocês apoiam que as músicas denunciadas pela MMPB sejam modificadas? Independentemente da resposta, analise o assunto e seus desdobramentos.
Lilian – Consideramos importante a reflexão acima de tudo. Não podemos negar a história jamais: temos que aprender com ela, com o nosso passado. Acreditamos que artistas que estão abertos ao debate são muito importantes nesse momento de sociedade que estamos vivendo. Os Racionais MCs retiraram “Mulheres Vulgares” do repertório por entenderem que não faz sentido manter uma letra que é basicamente uma sequência de ofensas. Outros exemplos são o Criolo e Valesca Popozuda, que modificaram trechos de suas músicas que eram machistas e transfóbicos. Acreditamos ser importante que os artistas/compositores entendam a sua responsabilidade: uma obra não só pode ofender pessoas como também ajudar a moldar o pensamento de uma multidão. A música tem um impacto direto na sociedade, não é única culpada e não faz a agressão girar somente, mas ajuda a moldar o imaginário cultural também.
Matheus Luzi – Pegando carona na pergunta anterior: Quais são as finalidades do MMPB? O que vocês almejam acontecer na música brasileira e na sociedade brasileira com as denúncias feitas?
Lilian – O maior objetivo do MMPB é ajudar a gerar a reflexão de maneira simples, fugindo do academicismo. Enquanto reflexo da sociedade, as músicas nos ajudam a debater as problemáticas, rompendo o preconceito que muitas pessoas geralmente tem com o “feminismo”. Colocar machistas em pauta e convidar as pessoas a embarcar nessa reflexão foi uma maneira mais didática que encontramos de falar sobre o feminismo. O Brasil é o 5º país que mais mata mulheres no mundo, e não é por acaso. Temos muito o que avançar nesse debate. Por isso, nosso intuito é levar informação para cada vez mais pessoas.
Matheus Luzi – Sei que é uma pergunta difícil, mas vamos lá… É possível vocês listarem as canções que mais chocaram vocês, aquelas que vocês pensaram “EU NÃO ACREDITO NISSO!”?
Lilian – Tem algumas músicas que marcam, e cada uma delas de uma maneira diferente. De todas, a que mais me marcou foi “Te estuprar com Carinho” de uma banda chamada Os Cascavelletes. O título fala por si só: conseguiram colocar estupro e carinho numa mesma frase. A letra que é do final da década de 80 é curta, inacreditável e traduz a cultura do estupro. Uma atual que me choca muito é “Ciumento eu?” Henrique & Diego, que fala sobre um relacionamento abusivo onde um homem justifica seu ciúme como “excesso de cuidado”. “Tem uma câmera no canto do seu quarto / Um gravador de som dentro do carro / E não me leve a mal/ Se eu destravar seu celular com sua digital”. A letra é problemática do começo ao fim, principalmente quando vemos casos diários de feminicídio onde os assassinos são parceiros ou ex-parceiros. Por fim, uma última música que me deixou muito chateada foi “Nosso Sonho” do Claudinho & Buchecha. Fiquei chateada porque eu realmente adoro essa música e quando me toquei da letra tomei um baita susto. A música relata um clima de paquera maneiro com muitas nuances, e então, chegamos em um um trecho que diz “Mas tudo isso porque eu me sinto coroão / Tu tens apenas metade da minha ilusão / Seus 12 aninhos permitem somente um olhar”. Ou seja, é um cara de 24 anos querendo pegar uma menina de 12 anos. É assustador.
Matheus Luzi – Também julgo interessante e curioso sabermos em quais músicas denunciadas pela MMPB vocês encontraram mais dificuldade em identificar o machismo, ou seja, as mais veladas, e quais foram as mais “escancaradas”.
Lilian – Uma música que foi complexa de analisar foi “A mulher que eu queria” do Capiba que foi trazida como sugestão pela equipe do Paço do Frevo, Museu e Centro de Referência em Salvaguarda do Frevo de Recife. É uma música de 1974 que diz “Andei, virei, mexi / Até que pude encontrar / A mulher que eu queria / Para enfeitar o meu lar / Eu sei que não foi fácil / Mas eu tinha que encontrar / A mulher que eu queria / Para enfeitar meu lar”. Para essa análise tivemos que considerar o contexto da época, afinal, “enfeitar” metaforicamente pode significar muita coisa. Mas ao pé da letra conseguimos ver um exemplo de como a linha da objetificação pode ser mais tênue do que se imagina: a mulher acessório, a que serve como posse, como ostentação para os outros e para o lar dele (muita atenção para o pronome possessivo “meu lar”). Tem outra do Chico Buarque que pode passar despercebida, que é “Tua Cantiga” que diz “Quando teu coração suplicar / Ou quando teu capricho exigir / Largo mulher e filhos e de joelhos vou te seguir”. Colocar os filhos nessa equação de largar a mulher para ficar com amante é mais complexo ainda porque retrata um comportamento machista bem comum: abandono parental. O homem está pronto para começar uma nova vida e larga a mulher a missão de cuidar dos filhos, como se ele não tivesse nada a ver com isso. Agora, infelizmente, músicas escancaradas é o que mais tem.
Matheus Luzi – Momento de reflexão. O que vocês acreditam que está por trás das letras denunciadas? Quais processos históricos e culturais fazem com que existam músicas assim?
Lilian – Acreditamos que música e sociedade se retroalimentam. Por vivermos numa sociedade patriarcal, o resultado não seria diferente. Compositores, produtores, músicos, de forma geral, nossa indústria fonográfica ainda é dominada por homens, com mais espaço para eles do que para elas. Embora cada homem tenha sua vivência e seu repertório de vida, muitas delas se esbarram no machismo estrutural, então o que vemos no produto final são canções problemáticas. Obviamente isso não é uma regra, temos uma infinidade de canções compostas por homens que são lindas e historicamente importantes para a nossa cultura. Mas o espaço para as mulheres ainda é pequeno, e embora isso venha mudando de pouquinho a pouquinho, ainda vamos levar um tempo para ter equidade nesse espaço.
Matheus Luzi – Por fim, deixo aqui um espaço livre para vocês comentarem o que acharem importante de ser dito e que eu não perguntei.
Lilian – As músicas que coletamos podem ser encontradas no site http://mmpb.com.br/ e agora também no nosso instagram https://www.instagram.com/mmpb_brasil/ 🙂