8 de dezembro de 2024
Música

Ao musicar poemas, Enzo resgata essência da MPB no álbum CANÇÃO ESCONDIDA [ENTREVISTA]

 

Musicar poemas não é tão fácil como alguns sugerem. Na verdade, é bem mais difícil. Mas para Enzo, que acaba de lançar o álbum CANÇÃO ESCONDIDA, esse desafio foi encarado de frente, e com as melodias chovendo como água em seu ouvido despretensioso.

O forte do álbum, além das poesias musicadas, é também o modo como o músico resgata melodias, vocal e arranjos da MPB, feita por Belchior por exemplo. A leveza e o sentimentos são outros tópicos que iluminam o trabalho de Enzo.

As canções foram feitas a partir de poemas de Luís de Camões, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Leminski, Arnaldo Antunes, Alice Ruiz, Danislau, Marcelino Freire, Cleusa Bernardes (mãe de Enzo) e Clara Averbuck.

 

Abaixo, você verá uma entrevista na íntegra que fizemos com Enzo:

 

Ao acabar a música, clique no link do  youtube para conferir as outras faixas do álbum.

 

Deve ter sido um desafio musicar poemas tão renomados como esses. Pensando nisso, como foi seu processo de criação das músicas?

O processo de criar canções a partir de poemas escritos em livro aconteceu, a princípio, de forma muito natural, e por isso mesmo, não planejada, não sistematizada. Dificilmente escolho um  poema para musicar. Parece que é o poema que me escolhe. O processo é mais ou menos assim: estou lendo um livro de poesias, sem qualquer pretensão, e a leitura de algum poema me sugere uma melodia. Algo que sopra no meu ouvido, sem eu ter uma intenção anterior. Quando isso acontece, corro pro violão e tento desenvolver a ideia. E isso foi acontecendo ao longo dos anos. A primeira canção deste repertório brotou em 2001, quando eu estava lendo AS COISAS, do Arnaldo Antunes, e pintou o EU. O poema tinha uma ideia de sobreposição de camadas (eu coberto de pele coberta de pano coberto de ar), e, intuitivamente, já pensei isso com a melodia acompanhando esse movimento de ascensão, e depois de descendência, e depois subidas e descidas se cruzando no percurso melódico. A faixa do Camões já apareceu quando eu estava estudando a obra dele na faculdade, e estava finalmente conseguindo sentir e entender sua poesia, especialmente os sonetos que falam de amor. Aí foi desse jeito, pintou a melodia. Depois que eu já tinha uma série de poemas musicados, foi que eu pensei que isso poderia se tornar o disco. Um disco que chamasse a atenção para o processo de composição, revelando a minha linguagem ao musicar poemas. Eu queria reunir essa obra pra chamar a atenção para esta transformação da poesia, do papel para o som.

 

Certamente você teve algum poema mais difícil de ser musicado. Pode nos contar algo sobre isso?

Como eu disse, a minha sensação é de que é o poema que me escolhe, e essa sugestão intuitiva de uma melodia acaba “facilitando” o meu trabalho. Eu tento buscar uma revelação. Mais do que criando, parece que eu estou descobrindo. Descobrindo uma música possível para aquela obra, que funcione. Uma descoberta pessoal, porque o mesmo poema pode ser musicado de outras maneiras por outros compositores. O Drummond talvez seja o autor mais improvável deste repertório, porque o Drummond é um poeta mais prosaico, não tem aquela musicalidade evidente nos versos, é algo com que ele chega a romper mesmo, em muitas de suas obras. Mas o poema dele apareceu como os outros, e é sempre mais ou menos o mesmo grau de labuta pra seguir. Já aconteceu de alguns travarem, vem a ideia pra alguns versos e não consigo dar sequência. Aí quem sabe um dia eu chegue na conclusão.

 

Você musicou poemas de Luís de Camões, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Leminski, Arnaldo Antunes, Alice Ruiz, Danislau, Marcelino Freire, Cleusa Bernardes e Clara Averbuck. Que relação você tem com essa galera?

Com cada escritor é um tipo de relação. Tem os mais canônicos, que são o Drummond e o Camões, dos quais eu sou leitor há muito tempo. Eu sou mineiro, e o Drummond tem essa coisa introspectiva e silenciosa de Minas, com a qual me identifico. E Minas talvez seja o mais português dos estados brasileiros, gosto muito dos autores portugueses, como José Saramago, António Lobo Antunes, Fernando Pessoa, e, claro, Camões. O Arnaldo Antunes é aquele cara que fez a cabeça da minha geração desde a infância, vendo os Titãs cantando no Chacrinha. É um artista da palavra, seja na música, no livro, em uma exposição. Leminski é um poeta que parece um herói da linguagem. Herói anti-herói. E Alice Ruiz é quem sabe chegar no fundo do profundo com a máxima delicadeza. Todos esses que citei até aqui, conheci pelas obras. Depois tive a alegria de conhecer pessoalmente a Alice e o Arnaldo, com ele chegamos a fazer um show. Com o Marcelino Freire eu tenho contato desde 2009, quando participei da Balada Literária com minha banda, o Porcas Borboletas. De lá pra cá, nos encontramos algumas vezes, e nossa parceria surgiu de um texto que ele publicou em blog, houve muita interação até chegarmos na forma final. A Clara Averbuck é minha amiga e parceira há quase 10 anos, estamos concebendo um trabalho juntos, um disco em que ela vai cantar as nossas parcerias. Ela me manda muita coisa pra eu musicar, mas a que foi para o meu disco eu fui buscar no último livro dela. E tem os poetas de dentro da minha casa. Danislau, meu parceiro de Porcas Borboletas, amigo maior, parceiro comparsa, sabe tudo de mim, mais do que eu. E Cleusa Bernardes, minha mãe, poeta maior, de quem sou simples aprendiz.

 

Com esse disco, você está tentando desmitificar que a poesia é algo chato e inacessível. Comente.

Há algumas noções de poesia, no senso comum, que a percebem como algo muito erudito, ou como uma expressão dos sentimentos. Pode ser essas coisas, mas vai muito além. Oswald de Andrade, há quase 100 anos, já bradava que a poesia existe nos fatos, na linguagem cotidiana, na fala corrente, na contribuição milionária de todos os erros. Essa desmistificação da poesia é importante para que ela possa ter espaço no nosso tempo. E a canção é uma das formas mais eficazes de difusão da palavra poética em nosso tempo. Canção e poesia escrita são coisas muito diferentes, mas são ambas linguagens poéticas. Na canção, a poesia dança. Conforme a música. E todo mundo sabe letras de canção de cor. Aí você está ouvindo uma canção e alguém te diz, isso surgiu de um poema de Drummond, de Camões. E está aí, fluente e fácil. Então não há porque ter medo da poesia.

 

CANÇÃO ESCONDIDA é seu primeiro disco solo. Mas com a banda Porcas Borboletas você já lançou outros quatro trabalhos. O que você, como artista e músico, acredita que tenha evoluído? Quais foram os crescimentos neste álbum novo?

O meu trabalho com a banda é muito horizontal. Não é a linguagem pessoal de nenhum dos integrantes, é a linguagem que a gente tem quando está junto, uma linguagem de grupo. Mas é claro que eu, e também os outros porcas borboletas, tenho uma linguagem pessoal que venho aprimorando com o passar dos anos. Um primeiro disco solo já tendo gravado 4 com a banda e participado de outros tantos como músico e produtor é uma novidade que já carrega um tanto considerável de experiência. Como tenho esse histórico de trabalho coletivo, foi muito bom pra mim ter o Saulo Duarte na produção, pra dividir as tomadas de decisão. E é uma sensação de libertação colocar no mundo um trabalho que estava guardado, escondido. E isso é só um começo. O próximo disco já está composto, e devo ter mais de 100 composições solo ou em parceria que ainda não foram gravadas. Então este primeiro álbum solo é o caminho para um crescimento artístico que estou vislumbrando. Lá na frente vai estar a obra.

 

E sua carreira solo, como está indo?

É diferente também pensar a carreira solo. Estou gostando da experiência, os primeiros shows de lançamento funcionaram muito bem. Eu já fazia alguns projetos solo, como o show em que toco sambas do Tom Zé, mas o disco dá outra perspectiva. Eu gosto do processo mais que do resultado, gosto do momento da criação e do palco. Quero seguir fazendo isso. Pensar a própria carreira é, talvez, difícil para o artista, e tenho a sorte de trabalhar com os parceiros da Navegar Cultura, que pensam junto comigo cada passo. Estamos indo, e aí está a graça da vida.

 

Você tem alguma relação pessoal ou profissional com a literatura?

Muita! Eu gosto de ler e escrever desde que me entendo por gente, nem consigo localizar. Sou filho de escritora / professora de português e literatura, e não tem como isso não contar. Em casa os livros sempre estiveram presentes, assim como os discos. Sou formado em Letras e no ano passado concluí meu mestrado em Estudos Literários, em que fiz um estudo sobre a relação da obra de Noel Rosa com o projeto poético pau-brasil de Oswald de Andrade. Tenho também um livro de poesias publicado, POESIA COLÍRICA, que saiu em 2014. E outros tantos guardados. Muitas vezes faço canção sobre algum poema que escrevi tempos atrás.

 

E outras formas de arte?

Eu venho de Uberlândia, de um ambiente universitário em que os artistas das diferentes linguagens têm muita interação. Não tem muita panelinha, está misturada a galera da música (pop e erudita), da literatura, do audiovisual, das artes visuais, do teatro, da dança e das culturas populares. Me relaciono com todas e de cada uma alguma coisa eu aprendi.

 

Tem alguma história interessante que envolva disco?

De todos os poetas que estão no disco, os vivos, a última pessoa pra quem mostrei a respectiva canção foi minha mãe. Ela conheceu a faixa quando já estava gravada. Já musiquei muitos poemas dela, mas o POESIA CONCRETA, que entrou no disco, é muito especial. É o que tem maior carga emotiva. Ela fez para o pai dela, meu avô, que eu sequer conheci. Ele foi pedreiro, e chegou a ir para a cidade grande nos anos 40. Tocava violão, cantava boleros, pelo pouco que sei. E era um sujeito muito doce. Alma de artista. O poema faz uma aproximação da lida diária com a vida de artista. E aborda a figura do pai, a memória, a ancestralidade. Por isso, a faixa foi pra um outro lugar musical, flertando com o choro, com a música pré-bossa nova, do tempo do meu avô. Eu fico feliz que o disco conte essa história.

 

Fale mais sobre o disco (coisas que eu não perguntei, e que você gostaria de ter dito).

Eu gosto muito do projeto gráfico do disco. Estava com muita dúvida sobre quem faria o encarte, até que o Eduardo Lemos me sugeriu o nome da Elisa von Randow, que fez a capa do TODA POESIA, do Paulo Leminski. Seria uma aproximação com uma artista mais ligada ao universo do livro e da literatura que da música. Fiquei muito emocionado quando vi o resultado, o jogo de cores no encarte, o movimento gráfico. Essa tradução visual de um disco é sempre um desafio, e me reconheço no trabalho que outra pessoa fez para o meu trabalho. É o que espero que sintam os poetas que tive a ousadia de musicar.

 

 

 

 

 

administrator
Fundador e editor da Arte Brasileira. Jornalista por formação e amor. Apaixonado pelo Brasil e por seus grandes artistas.