Vanessa Aragão / Divulgação.
No final de 2020, quatro músicos baianos idealizaram o projeto Afrolirismos, que, por meio de um processo riquíssimo de pesquisas e experimentação, tem como intuito reunir numa coisa só a música erudita e a popular, em especial, a afro-brasileira.
Formado pelo tenor Carlos Eduardo Santos, o percussionista Cassiano Alexandrino, o violonista e diretor artístico Luan Tavares e o arranjador Roberto Pitta, o conjunto lançou em 2021 seu EP de estreia, intitulado “Afrolirismos Nº1”, com duas faixas autorais, disponíveis nos apps de streaming.
Tamanha grandeza invocou em mim (Matheus Luzi) o desejo de entrevistá-los. É o que você confere a seguir!
Matheus Luzi – A princípio, como surgiu a ideia da banda? E depois, como ela se desenrolou?
Luan Tavares (violonista e diretor artístico) – Em 2018, eu fui convidado por Carlos Eduardo pra acompanha-lo no seu Recital (de nome “Tenere”). Tocamos duas músicas do repertório popular com a voz lírica, adoramos o resultado e por algum tempo nutrimos a vontade de trabalhar essa ideia de unir o universo popular e o lírico. No fim do ano passado, com a abertura dos editais durante a pandemia, a gente teve a ideia de realizar uma pesquisa envolvendo ritmos afro-brasileiros e o canto lírico. Imediatamente, eu me lembrei da pesquisa e dos experimentos que Cassiano (percussionista) já vinha fazendo e convidei ele pra participar. Depois eu achei que faltava alguma coisa ainda, um elo que interligasse a música erudita e a música popular e aí decidi convidar Paulo Pitta (diretor musical e arranjador), que já tem uma trajetória na música popular, pesquisa os ritmos afrobaianos e é estudante de Composição e Regência. Era a peça que faltava. Então, escrevemos o projeto e fomos aprovados pelo edital da Lei Aldir Blanc pra realizar uma pesquisa cujo material rendeu repertório pros nossos experimentos e pra concepção da identidade do grupo. Daí pra frente foi tudo regado a doses enormes de companheirismo, bom humor, estudo, experimentação e um exercício constante de bom gosto.
Matheus Luzi – Vocês já estão na pista há algum tempo, o que faz minha pergunta ser oportuna. Qual vem sendo a receptividade da banda? E mais, quais os desafios que vocês estão encontrando nessa missão de unir o erudito e o popular?
Luan Tavares – Bem, todo mundo que escuta, geralmente, traz feedbacks muito positivos. A gente conseguiu conceber uma sonoridade muito peculiar e tudo isso, a recepção e o som em si, é resultado de muita dedicação da nossa parte. Cada nota dos arranjos e das composições é escolhida a dedo, rola muito diálogo e experimentos durante os processos de composição coletiva. Isso permite que a gente se debruce sobre o material que a gente tem na mão e consiga escolher bem entre uma gama de opções. E o público quando escuta acaba percebendo isso e se sente tocado de alguma forma.
No primeiro momento, o principal desafio foi entender o papel de cada instrumento e em que lugar a gente se colocaria a serviço da música. Porque, por mais que hajam papéis bem definidos à primeira vista (a voz canta a melodia e o texto, o violão acompanha, a percussão também, ritmicamente), a gente foi percebendo que esses papéis poderiam se diluir e isso permitiu que nós estendêssemos nossos instrumentos pra fora do seu lugar comum. Por vezes, você vai perceber uma percussão melodiosa, um violão mais percussivo, uma voz mais marcada ritmicamente e ao mesmo tempo fluida. Esse desafio acabou sendo uma constância no nosso processo criativo porque continuamos nessa busca de expandir as possibilidades de atuação de cada instrumento/instrumentista e passar por isso é uma experiência muito simbólica e enriquecedora pra nós. No fim das contas, um “contamina” o tocar do outro e tudo de se encaminha nesse sentido.
Matheus Luzi – Em release enviado à imprensa, vocês dizem que o som do Aflolirismos é fruto de muita pesquisa.
Paulo Roberto Pitta (Diretor Musical e Arranjos) – Acreditamos que somente com muita pesquisa e experimentação podemos chegar em lugares sonoros que façam jus a junção de tais instrumentos. Só o fato de criar obras autorais e arranjos para uma instrumentação como a nossa (percussão afro baiana, violão 7 cordas e voz lírica) já poderia nos render muitos escritos, experimentos, etc. Imergir esse grupo de instrumentos em aspectos poéticos e estéticos nos incita a curiosidade da experimentação e é o que mais tem nos levado à frente, a curiosidade de misturar esses instrumentos com as nossas formas particulares de tocá-los, de aloca-los nas nossas intuições poéticas. Para além disso, somos amigos e trabalhar dessa forma nos engrandece muito como amigos, artistas, pesquisadores. Ouvir o EP pronto nos deu muita vontade de continuar a pesquisar onde, sonoramente, podemos chegar com essas escolhas que fazemos. Desenvolve-las e encontrar novos caminhos. A musicalidade é essa: a pesquisa, a experimentação, a amizade e a vontade de encontrar momentos musicais que nos preencham e nos movam em algum bom sentido.
Matheus Luzi – Sei que é difícil responder essa pergunta, mas vamos lá! Dessa união de tantas referências, do erudito ao popular, seria possível uma definição da musicalidade do grupo?
Luan Tavares – Eu diria que somos um trio camerístico afro-baiano. Ao escutar, você saca um quê de música de câmara mas, ao mesmo tempo, rola um balanço, um suingue tipicamente baiano.
Matheus Luzi – Tendo em vista esses fatores quer permeiam a banda, falem sobre o processo criativo.
Carlos Eduardo Santos (Tenor) – Eu acredito que nosso processo criativo desde o início tem sido feliz porque começamos na fonte, todos nós tivemos contato com a área do outro, através dos seminários sobre canto, percussão, violão e técnicas de composição. Cada um apresentou sua maneira de cantar (no meu caso), de tocar (no caso de Luan e Cassiano) e de compor (no caso de Paulo, que é o responsável por organizar as ideias de arranjo e composição). Conhecer as capacidades e familiaridades de cada instrumento, do compositor dos instrumentistas permitiu uma interação mais profunda e compreensiva da coisa toda. Além disso, também houve uma pesquisa do que já havia de registro sobre o tema explorado por nós, a mistura entre o erudito e o popular. Esse embasamento possibilitou uma liberdade criativa longe de serem aleatórias, somos uma banda de gente que gosta de ler artigos, sem perder o diálogo com a vida diária (risos)!
Matheus Luzi – Vamos fugir um pouco do quesito “musical”, e partir para o lado poético. O que as letras da banda trazem? Quais os conceitos e mensagens?
Carlos Eduardo Santos – Depois de intensas escutas, leituras e experimentos, afunilamos o processo criativo tendo um tema que como norte. A linha de “Afrolirismos N° 1” tem como inspiração os cantos de trabalho e religiosos e nesta etapa, focamos no Mar como temática, com cantos que falam da relação do trabalhador com essa paisagem tão comum para os soteropolitanos e outras pessoas de cidades litorâneas. Para ilustrar, trago uma imagem: um ônibus vem do subúrbio ou de locais longe do Centro, cheio de trabalhadores e passa pela Contorno (uma avenida com uma vista esplendorosa para Baía de Todos os Santos). A gente sempre respira fundo e há um alívio nesse momento. Aí reside a nossa poesia urbana, sem romantizar a vida sofrida do trabalhador, é claro. Complemento que, além de retratar a labuta diária e sofrida, trazemos à tona a perspectiva de dias melhores para as próximas gerações, para os filhos, netos e bisnetos, sobretudo de negros e de pessoas da periferia.
Matheus Luzi – Como vocês encaram o presente e o futuro de vocês enquanto banda?
Cassiano Alexandrino (percussionista) – Enquanto banda, encaro o presente e o futuro como uma oportunidade única de evoluir no quesito música. Daí então, tento contribuir da melhor forma possível para o conjunto e, aos poucos, ir observando o processo criativo como um todo em busca de caminhos de inovação, que levem a bons resultados.
Matheus Luzi – O que o atualmente, incluindo política e muitas outras questões, influenciam nos rumos da banda?
Carlos Eduardo Santos – Estamos na época de manter nossas vozes e nossa arte vivas nesse país que é tão rico e tão mal gerido. A intenção é fazer shows, participar de festivais, trocar experiências, ao passo que continuamos criando. Afrolirismos ainda tem muito a dizer, aguardem!
Matheus Luzi – Agora deixo vocês a vontade para falarem o que quiserem.
Banda – Gostaríamos de convidar todos a escutar nosso trabalho e nos acompanhar nas redes sociais. Tem bastante coisa bacana por vir ainda e vai ser um prazer e um privilégio enorme pra nós ter uma pá de gente caminhando conosco.