OS OLHOS DA MENINA (LAB 344) é o terceiro álbum da cantora, compositora, instrutora de meditação e monja zen budista Valeria Sattamini – os anteriores são SAMBA BLIM (2004) e LA VIE EM BOSSA (2014). Nasceu no Nepal, durante uma viagem de peregrinação espiritual e ajuda humanitária da artista às vítimas do terremoto que devastou aquele país em 2015. A aventura começou na Índia e passou por Lumbini, onde nasceu o Buda Sakyamuni, antes dela visitar as principais cidades e algumas aldeias afetadas, em sua maioria na região do Vale de Catmandu. Valeria diz que começou a cantarolar a melodia e alguns versos que dariam origem à faixa título, durante um longo e contemplativo passeio de bicicleta.
“O Nepal realmente abalou minhas estruturas! Como um povo que havia passado por uma tragédia daquele tamanho conseguia manter o coração aberto? O disco fala de resiliência, amor e compaixão, qualidades que eles têm de sobra”, relembra. OS OLHOS DA MENINA é uma espécie de autobiografia espiritual musicada da cantora, no qual ela também conta um pouco dessa viagem que marcou a sua vida. O fio condutor está nos ensinamentos do Dharma, que ela apresenta sob a forma de canções autorais inéditas e músicas de outros compositores.
Das 13 faixas, seis são releituras que dialogam com o universo de suas composições. Estão no disco versões de O QUERERES (Caetano Veloso), SAMSARA (Antonio Saraiva), MISTÉRIO DO PLANETA (Moraes Moreira / Galvão), SENHOR DA DANÇA (Luiz Fernando Kirsch), UMA VIDA (Arnaldo Medeiros / Dom Salvador), e QUANDO OLHO PARA O MAR (Alceu Valença).
Abaixo, confira na íntegra uma entrevista que fizemos com Valeria.
O fato de você ser budista, influenciou quanto no álbum como um todo?
Sim, com certeza. Esse álbum só existe porque eu me tornei budista. Em determinado ponto da minha prática, comecei a questionar meu repertório, especialmente as canções que eu já havia escrito, pois sempre falavam de algum tipo de sofrimento de um ponto de vista bem egóico. De um modo geral as letras falavam de amor romântico, então era aquela coisa de sempre, ou exaltando um momento de paixão ou lamentando uma separação. Ou, quando não era nessa vibe romântica, eu escolhia músicas que se pudesse dançar, porque de fato, eu adoro dançar. Tenho um espírito de DJ ao selecionar repertório e gosto muito de pesquisar coisas antigas e dar uma roupagem diferente a elas através dos arranjos.
Mas voltando à questão da influência budista, entrei em crise com as músicas que eu compunha e cantava na época, e, seguindo o conselho de meu mestre no budismo, o monge zen japonês Tokuda Roshi, comecei a buscar canções que falassem do Dharma, o conjunto de ensinamentos de Buda, direta ou indiretamente. Isso virou meio que uma missão espiritual para mim e acabei me surpreendendo e me divertindo muito com essa pesquisa!
Na verdade, canções que eu já conhecia há muito tempo ganharam um novo sentido e até mesmo as minhas próprias canções também. Parei de implicar com elas, rs! O que às vezes acontece depois de algum tempo de prática no budismo é que nossa percepção dos fenômenos muda drasticamente.
Os sentidos ficam mais aguçados para tudo e tudo pode ganhar um sentido mágico. Acho que isso se deve à nossa não negação da impermanência, da aceitação de que não temos nenhum controle diante da vida, pois sabemos que todos vamos morrer um dia e não temos a menor ideia de que dia será esse.
Ao contrário de ser uma visão pessimista ou niilista da vida, para nós budistas, esse é um dos ensinamentos mais preciosos, pois nos dá a real noção do que seja viver no presente, degustando cada momento exatamente como ele é, um momento único que não temos como agarrar.
Aprendemos a nos jogar no fluxo da vida e a fluir com ela, sem julgamentos, sem apego ou aversão. Acho que essa nova forma de ver o mundo e de viver nele me fez olhar para tudo, especialmente para a música, que é meu objeto de trabalho, como sagrado.
Na Índia, onde estive em 2015, a música é uma prática espiritual muito séria e profunda, onde o conhecimento é passado através de uma linhagem, de mestre a discípulo.
Hoje em dia, para mim, não há separação entre meu ofício de cantora e compositora e tudo que isso envolve e minha prática espiritual. Minha professora de canto há mais de vinte anos, Cecilia Spyer, é para mim uma grande mestra espiritual também.
Não por coincidência ela também pratica o budismo, na mesma linhagem em que comecei a praticar. Outro grande ensinamento, esse da interdependência de todos os fenômenos… Não existem coincidências, as coisas acontecem como resultado de determinadas causas e condições. Ou seja, tudo é Física!
E o conceito do álbum, qual é?
Esse álbum fala de minha própria prática espiritual budista, da maneira como a vejo, sinto e experimento. É minha forma de compartilhar o Dharma. Imaginei o álbum com a estrutura de um livro, com 4 partes que juntas totalizam 13 capítulos. Por exemplo, uma das partes fala sobre o tema Samsara, a confusão mental em que a maioria dos seres se encontra, e as 3 músicas que compõem esse bloco são como capítulos, mostrando o Samsara sob 3 diferentes ângulos. Além disso, é uma espécie de “road album,” a trilha sonora da viagem que fiz à Índia e Nepal em 2015, de caráter espiritual e de ajuda humanitária.
Como ele surgiu?
Depois de coletar essas músicas que falei, comecei a compor com esse enfoque no Dharma também. De repente me vi com uma coleção enorme de músicas e comecei a fazer pequenas apresentações testando esse repertório. As pessoas ficavam amarradonas! Curtiam, interagiam, dançavam… é disso que eu gosto, de ver o público se divertir!
Então pensei em transformar isso num disco e chamei meu amigo e parceiro musical de longa data, o produtor e arranjador Flavio Mendes, pra gente começar essa empreitada. Foi um processo longo, sem nenhuma pressa e era tanta música que a gente tinha dificuldade em escolher! Se fosse uma coletânea, daria pra fazer vários volumes rs!
Mas não era essa a ideia, queria que o trabalho tivesse uma unidade, que contasse uma história. E isso acabou acontecendo de fato, totalmente sem querer.
Em 2015, após o terremoto no Nepal, me engajei num grupo de ajuda humanitária às vítimas do terremoto. Isso foi em abri de 2015 e trabalhamos ao longo de vários meses arrecadando recursos para enviar a uma ONG que estava construindo casas para a população dos vilarejos mais pobres, nas montanhas ao redor do Vale de Kathmandu, onde a ajuda oficial não chegava direito.
Em setembro do mesmo ano, viajei pra lá, junto com um dos fundadores do grupo, Guilherme Samel, através de sua agência de turismo, a Chörten, que organiza viagens para essa região de India, Nepal, Butão e Tibete, sempre com um enfoque espiritual. Primeiro fizemos uma peregrinação espiritual na Índia, passando por Dharamsala, a cidade exílio do Dalai Lama, e também pelos 8 Locais Sagrados de Buda, cidades por onde o Buda Sakyamuni passou, nas quais existem os sítios arqueológicos dos lugares onde ele nasceu, viveu, se iluminou, ensinou e morreu.
Foi ao longo da viagem que o disco começou a tomar forma e a fazer sentido na minha cabeça. Eu tinha um caderno, uma espécie de diário de viagem, onde anotava algumas coisas, pensamentos, reflexões, pequenos poemas ao estilo haiku, e comecei a anotar canções que vinham à minha mente em determinados momentos. Optei por não usar muito o celular durante a viagem, só como meio de comunicação mesmo. Procurei praticar o silêncio nesse sentido e me abrir para os novos sons que estava ouvindo, como por exemplo o motor dos tuc-tucs, as buzinas… (Pena que eu não gravei isso!!! Carlinhos Brown iria pirar!!!) Então eu não ouvia música, mas tinha sempre a minha playlist do Dharma na cabeça e eu ia anotando cada música que os momentos me faziam lembrar. Nem preciso dizer que meu repertório acabou aumentando com isso, né?!
O que tudo aquilo que você conheceu em Nepal, acrescentou ao álbum?
O que mais me impactou tanto na Índia quanto no Nepal foram as pessoas. Ambos os países têm uma espiritualidade muito forte baseada nas tradições hinduístas e budistas daquela região. A maneira como eles vivem essa espiritualidade se expressa naturalmente no seu jeito de ser. Não há uma separação clara entre vida mundana e espiritualidade, simplesmente é algo intrínseco à cultura deles, que faz parte do dia-a-dia das pessoas. Essas religiões têm valores éticos muito claros, como a compaixão, por exemplo, que norteiam realmente a vida das pessoas. Claro que o sofrimento está presente e todas as dificuldades humanas também, ainda mais se tratando de países com altos índices de desigualdade social, especialmente a Índia, onde sistema de castas é mais rígido que no Nepal. Mas o fato é que, mesmo em meio a grandes dificuldades, as pessoas nesses dois países são incrivelmente amorosas e sábias. Uma sabedoria natural, como a dos nossos irmãos dos povos indígenas aqui no Brasil, que independe de conhecimento, instrução ou erudição.
Outra coisa que me chamou muito a atenção foi a resiliência desses povos. No Nepal fiquei realmente abismada! Como um povo que tinha acabado de passar por uma tragédia daquele tamanho conseguia seguir vivendo com tanta abertura no coração? Isso se tornou um koan pra mim durante a viagem e a conclusão a que cheguei é que era justamente essa abertura do coração que permitia que eles enfrentassem tantas dificuldades sem sucumbir, reconstruindo suas casas e vidas com toda paciência do mundo, passo a passo, tijolo por tijolo, sem medo e sem expectativa.
Mais uma vez a noção de impermanência ajuda, no caso deles essa impermanência é bem real, pois a qualquer momento pode acontecer um terremoto, em maior ou menor escala, fora as monções, fortes tempestades que assolam a região todos os anos na mesma época. Eles vivem a impermanência no dia-a-dia. Isso muda tudo de figura, né?! Quem tem condições de vida mais estáveis pode desenvolver uma ilusão de que as coisas são estáveis… só que não, rs! Todo mundo sabe disso, mas a gente às vezes prefere fingir que não sabe…
As músicas do álbum são suas? Se não, como foi o processo de curadoria?
Tá mais ou menos meio a meio. Algumas músicas minhas e outras que selecionei daquela lista enorme de músicas que remetem ao Dharma. Como disse, procurei costurar as músicas usando o Dharma como fio condutor, mas não queria fazer uma coletânea simplesmente, queria que o álbum contasse uma história e ao mesmo tempo fosse uma leitura pessoal dos ensinamentos de Buda. Longe de querer ensinar ou transmitir o Dharma, pois não me vejo como uma professora, muito menos como uma mestra zen! Sou uma aluna de grandes mestres, como Tokuda Roshi, Joan Halifax Roshi e meu irmão querido Alcio Soho Sensei.
Reverencio todos os mestres que encontrei e encontro pelo caminho, especialmente o Lama Padma Samten, meu primeiro professor no Dharma. Não chego nem aos pés de nenhum deles pra pensar em ensinar alguma coisa, mas sou praticante e instrutora de meditação há dez anos e isso mudou minha vida de fato.
Sou monja zen budista também e um de meus compromissos é compartilhar o Dharma, aquilo que aprendo e pratico, com outros seres, de todas as formas que estiver ao meu alcance. Por isso quis fazer esse disco, como uma forma de compartilhar o que aprendo e pratico no meu dia-a-dia. É só um jeito de estar no mundo, o meu jeito bem particular. Cada um tem o seu e a beleza da vida é podermos aprender uns com os outros.
Todos os seres que encontro são meus mestres. Minha família, meus amigos, os companheiros de trabalho e os de prática espiritual são meus mestres. Os compositores que escrevem essas preciosidades são grandes mestres para mim. Caetano Veloso, Alceu Valença, Moraes Moreira e tantos outros, são pessoas altamente espiritualizadas a meu ver. Eles expressam isso através da música.
A música em si é uma grande mestra. Mas no caso desse álbum, especificamente, usei aquele formato de livro que mencionei, cada bloco falando de um tema e cada música falando de um aspecto desse tema. MISTÉRIO DO PLANETA por exemplo, pra mim é a “melô” do monge zen, eu me sentia exatamente assim durante a viagem à Índia e Nepal e procuro encarar a vida assim, de forma desapegada e livre, mas sempre me sentindo conectada a tudo e a todos.
QUANDO EU OLHO PARA O MAR do Alceu, fala dessa interdependência de todas as coisas… “Quando eu olho para o mar, dentro do mar vejo um rio. quando eu olho para o rio, dentro do rio vejo a chuva. Quando eu olho para a chuva é como se olhasse as nuvens. Quando eu olho para as nuvens é como se olhasse o mar…” É lindo demais isso, gente!
O Flavio Mendes me ajudou pra caramba nessa seleção! Eu fazia uma seleção mais baseada no conteúdo das letras e ele na estética musical. Nossa dupla é infalível! Brinco que ele é minha alma-gêmea musical, rs!
Tem alguma história ou curiosidade interessante que envolva o trabalho?
Sim! A história de como compus a música OS OLHOS DA MENINA faixa-título e síntese desse trabalho. OS OLHOS DA MENINA foi inteiramente composta no Nepal, durante a viagem de peregrinação espiritual e ajuda humanitária às vítimas do terremoto de 2015 que devastou o país.
A viagem começou na Índia, mas em dado momento atravessamos a fronteira para conhecer Lumbini, no Nepal, local de nascimento do Buda Sakyamuni. Lá, durante um longo passeio de bicicleta, comecei a cantarolar a melodia e alguns versos que dariam origem à canção.
No dia seguinte voltamos para a Índia e seguimos nossa viagem pelos 8 locais sagrados de Buda. Cerca de 20 dias depois, fui para Catmandu, mas agora para concluir o trabalho do grupo AjudaNepal.org, do qual eu fazia parte desde o terremoto. Logo nos primeiros dias em Catmandu tive duas experiências muito fortes que me deixaram sem chão e ao mesmo tempo me fizeram ter fé em algo que não tenho palavras para explicar. Pedi por um milagre e ele aconteceu em dois dias…
Em Boudhanath, no entorno da Grande Stupa, conheci uma menina de rua de uns 10 anos que me cativou profundamente. Ela era falante, simpática, esperta e muito inteligente. Ficamos amigas e eu comprei comida para ela e sua mãe, que aguardava sentada com um bebê no colo. Pedi a todos os Budas e Bodhisattvas que ela pudesse ter um destino melhor e sair daquela condição o mais rápido possível, a tempo de ir para a escola e ter um futuro mais digno. No dia seguinte, ao visitar a praça principal, no centro histórico, onde ficam os templos e o antigo palácio do rei, vi de perto a Kumari, emanação viva da deusa Durga no corpo de uma menina. Ela mora em uma das construções que não havia desabado e estava escorada por toras. Quase todo o resto em volta tinha virado pilhas de tijolos, uma tristeza de se ver. A Kumari só sai de casa uma vez ao ano, durante as festividades onde é homenageada e carregada em procissão. Fora isso ela aparece todos os dias às 4 da tarde na janela do pátio interno de seu palácio, onde fica por no máximo dois minutos. Tive a sorte de vê-la nesse dia e ela me olhou profundamente nos olhos. Não era o olhar de uma menina de 11 anos, era o olhar de uma deusa muito poderosa. Quando cheguei na guest house, na mesma noite, terminei de escrever a canção. No dia seguinte, depois de um dia cheio de atividades, voltei para o local onde estava hospedada, uma casinha que aluguei no quintal da ONG com a qual estava trabalhando. Dentre outras coisas um dos enfoques da ONG era resgatar crianças de rua. E adivinhem quem estava lá brincando com outras crianças quando cheguei em casa? A menina que foi o objeto de minha prece alguns dias antes. Ela estava toda contente, pois sua mãe havia concordado que ela fosse para a escola. Essa música é pra ela e para todas as meninas-deusas do Nepal, da Índia, do Brasil e do mundo inteiro. Que todas as crianças sejam felizes e livres!
(Texto de introdução da assessoria de imprensa)