RESENHA DE Alexandra Vieira de Almeida – Escritora e Doutora em Literatura Comparada (UERJ)
O novo livro de poemas “EU E OUTRAS CONSEQUÊNCIAS” (Penalux, 2017), de Tanussi Cardoso aborda os conflitos existentes no interior de nossa realidade, sejam eles entre o eu e o mundo, o eu e o outro, os vários eus que compõem o mistério de um ser e, até mesmo, uma Super-realidade, entre o ser e Deus. Mas não é apenas o eu que se basta. Como uma teia de aranha, as consequências são os desdobramentos do sujeito, o que se funda no seu espaço interno e no seu ambiente externo, formando toda a physis. O ser não se satisfaz com sua pequenez de dentro e precisa se expandir para outros horizontes. Daí no título “e outras consequências”. No livro de Tanussi o que vale é a lei dos espelhamentos e seus paradoxos e tensões. Na bela orelha de Affonso Romano Sant’Anna, este diz: “É uma arte poética que retira das contradições a sua força”. O interessante a se notar na obra tanussiana é o confrontar de olhares, como entre o amor e a morte e, até mesmo, a vida e a morte. Os dois polos de uma mesma realidade.
O livro magistral de Tanussi Cardoso é formado por três partes. Na primeira parte, “Da colheita”, encontramos a essência do ser em confronto com outras realidades, sejam elas terrenas ou divinas. Na segunda parte, o conflito ocorre entre a cidade com toda sua violência e agressividade e a beleza silenciosa na natureza que funda a sede da poesia. Mas a poesia também se conjuga no mosaico urbano de nossas necessidades mais viscerais. A última e terceira parte, “Do enigma”, vem nos falar dos mistérios da linguagem do amor e suas dobras e continuidades, cujo clímax e êxtase recaem no sexo. A poesia de Tanussi, apesar de abarcar esta gama imensa do nosso real não se volatiza nas pequenas coisas, no banal e desinteressante mundo do supérfluo. Como disse Astrid Cabral, no seu maravilhoso prefácio sobre o escritor aqui em questão: “Tanussi Cardoso é poeta do lirismo a pino. Produz uma poesia sem contaminações com o reles, sem concessões ao banal rasteiro”. É de extrema urgência e importância tudo o que Tanussi poetiza. É um canto órfico ao amor e à morte que nos caracteriza, pois somos feitos de chama e deserto. Como disse Ricardo Alfaya, no posfácio do livro “o que torna o título de Tanussi diferenciado é justamente a inserção cósmica que sugere”.
No confronto com o outro, há perdas e ganhos, nos construímos e desconstruímos com o olhar do outro: “Há sempre perda no contato,/Mesmo que se some à pele o espanto”. Nessa cúpula de contrastes, encontramos também a dupla cisão do estar e do ser, duas faces do humano, na sua permanência transitória e na sua essência de eternidade, a alteridade e a identidade: “eu não sou/de onde nasci//eu não sou/de onde vim//eu sou/onde estou/eu sou/onde sou.” A repetição de “sou” nos versos de fechamento soa como leitimotiv de nossa multiplicidade vulcânica que atiça os espelhamentos do ser, a dobra é em espiral, é uma dobra barroca, como diria Deleuze, pois ela se espelha em diferença e não numa repetição insonora.
Outra tensão importantíssima no seu livro é entre a palavra e o silêncio, como estas duas linguagens podem se intercomunicar e formar a persona do sujeito. Na Arte, na poesia, é necessária a construção do sentido pelo não sentido, pelo deserto que nos move e impulsiona para a construção do verbo. E Tanussi utiliza uma bela estratégia para criar vácuos e plenitudes em seus versos. Usa poemas sem pontuação e outros com pontuação para revelar a força cristalina do branco e a temeridade da noite. O vazio, a introspecção e a linguagem e a extrospecção. Temos o eu e aquilo que o constrói que é a Arte: “O abismo que é abismar-se/Com o abismo e as maravilhas da Arte”. Temos, assim, a palavra-verbo que constitui a linguagem do grito, do barulho que fazemos para sermos conhecidos e expostos pelo preenchimento e o vazio que molda a esfinge, aquilo que desconhecemos dentro de nós mesmos. É a dupla cisão do ser que se desdobra em ato e pensamento, em gesto mudo e palavra dançarina. São voos da imaginação de um poeta múltiplo e plural que sabe versar com maestria e amadurecimento. Assim, temos, paradoxalmente, a gestualidade dos versos, sua dramaticidade e tragicidade em sermos Édipos e querermos desvendar os mistérios do ser humano. Tanussi Cardoso quer revelar a pausa de que precisamos para respirarmos melhor e a embriaguez dos sentidos caudalosos. Os jogos de espelhamentos que são tensos perfazem sua voz teatral: “(O espelho/só o espelho/existe)”.
A descoberta do sentido do ser se dá através da poesia, este mistério da palavra inaugural e primordial e o título de um dos poemas é bem ilustrativo, “Origem 2”. Temos, assim, as contradições entre o ato e a fala, entre o real e o interno, o que nos circunda e o que se engendra dentro de nós, querendo ser expelido para fora a partir da bela poesia de Tanussi: “O poeta, sutilmente,/afirma/o que o poema desdiz”. Aqui temos os ecos pessoanos de “o poeta é um fingidor”. Os jogos de fingir, ficcionais também produzem suas máscaras, e o que era essência se dissolve no ar. Sua poesia é de extrema solidão, mas também de comunhão com a humanidade que reside em nós e que quer ter contato com o exterior, com o outro. Se na poesia, residem o silêncio e a voz pronunciatória, é na origem que encontramos esse reflexo humano de Deus: “Ouvir a pronúncia de Deus/Ou seu silêncio”. Na origem divina, há o noturno e o diurno, as trevas e a luz, o caos e a ordem, o silêncio e a linguagem.
Na segunda parte, encontramos o entrelugar da natureza e da cidade, do deserto e da plenitude, do silêncio e dos choques visuais e sensórios do meio urbano. O “entre” parece ser a palavra-chave desta parte que desdobra o rio caudaloso na sua movência natural. O deslocamento do rio pode percorrer a natura e a urbe multifacetada e caleidoscópica: “Um rio/move-se/desloca-se/desnuda-se entre”. Enquanto a natureza se caracteriza por sua nudez e inocência primeva, o meio caótico urbano se veste de palavras e atropelos, são os sinais citadinos que nos levam do pouco e do menos, ao muito, ao múltiplo. A simplicidade da natureza é cortada por um rio que se reparte em dois, num entrelugar do paraíso e da artificialidade. Mas não pensem que a natureza por ser simples deixa de ser densa. Longe disso. Ela também produz seus espelhamentos e complexidades: “Árvores perdem suas raízes,/entrelaçadas/nos fantasmas de outras árvores “. Os mistérios das cifras e dos símbolos naturais nos conduzem à admiração pelo abismal, pelo que não pode ser traduzido por palavras banais, mas pela linguagem metafórica da poesia que se traduz em silêncio oracular. Assim, o silêncio e o canto, paradoxalmente, se encontram na natura. Um canto que é “música calada”, como diria San Juan de la Cruz na sua mística e interpretação dos dons divinos. Em Tanussi, temos: “O pássaro sangra o silêncio/com a violência do seu canto”. Assim, temos os intercâmbios entre a natureza e a cidade, produzindo seus espelhos metamorfóticos.
Na terceira parte, “Do enigma”, o amor produz seu grito de dor e de prazer, pois ele está totalmente inserido no tempo: “O que o amor/exprime/enquanto voz”. Nessa parte, temos os inúmeros jogos de eros, com a dupla face do erotismo, pois amor é vida e morte, pulsão e destruição: “O amor acaba quando começa/Como morremos no momento de nascer”. Eros é força de ligamento, de união entre opostos, mas também desmoronamento e tempo que se esvai num instante. Amor é passagem e permanência, a voz e a desertificação da linguagem, pois o ato do amor explode as palavras nos vácuos do desejo. Eros também tem a audácia de querer desafiar o tempo e interrompê-lo na cama elástica dos sentidos, do sensório, abertos ao corpo que esfaqueia a palavra proliferadora de nós. Nós queremos ultrapassar o tempo e fundar a eternidade do ato erótico que pode se esconder nas dobras do gozo. A escrita é a satisfação de um desejo como o prazer carnal, o verbo se faz carne: “Escrevo/não para passar o tempo/mas para ele não passar”. Portanto, no livro excepcional de Tanussi Cardoso que nos conduz aos caminhos e descaminhos dos contrastes, percebemos toda a multiplicidade do verdadeiro versar deste poeta amadurecido e digno de constar nos livros teóricos e didáticos de literatura de todo o país. Pois sua poesia nos faz pensar sobre nossa realidade circundante e sobre o sentido do ser. Trabalha com os temas fundamentais da literatura e desafia o leitor a desvendar os enigmas de sua existência, que é tempo, memória e esquecimento.