Capa do lançamento (Arte de Antonia Ratto)
Vinda de família de prestígio dentro do meio teatral, Sandra Pêra desde sua juventude já estava inserida nos palcos, com devoção e amor. Em seus mais de 50 anos de carreira, a artista, além das artes cênicas, desfrutou a vida musical ao participar da banda Frenéticas e, ao término do grupo, chegou a gravar um álbum solo, em 1982.
Aproximadamente quatro décadas depois, Sandra estava em plena turnê com um espetáculo musical quando a pandemia paralisou o projeto. No entanto, em um jantar despretensioso com Kati Almeida Braga, dona da gravadora Biscoito Fino, a ideia de gravar canções de Belchior surgiu. Depois de ouvirem a recente versão de Fagner para “Mucuripe”, a ideia de Kati passou a tomar forma.
Com direção musical de José Milton e de sua filha, Amora Pêra, o disco traz doze canções, sendo a maior parte de grandes sucessos do músico nordestino, como “Como Nossos Pais”, “A Palo Seco”, “Sujeito de Sorte”, entre outros. O brilho do álbum “Sandra Pêra em Belchior” também se deve a equipe que fez o projeto acontecer. Nas gravações vocais, participaram grandes artistas: Ney Matogrosso, Zeca Baleiro, Chicas e Juliana Linhares. “Meus convidados, além da admiração tem uma proximidade. Morei com o Ney no começo das Frenéticas, eu a Regina Chaves e a Lidoka. Tudo a ver cantar com ele ‘Velha Roupa Colorida’ e por sugestão do Ney, fizemos um final suave, diferente do que o arranjo sugere.”
“Com Zeca Baleiro trabalhei em um grande espetáculo do Ivaldo Bertazzo, ‘Mãe Gentil’, um projeto de dança com crianças da periferia de São Paulo e da Maré, no Rio. Ele prontamente aceitou o convite e escolheu ‘Na Hora do Almoço’ pra cantar comigo. Ter as Chicas no disco é motivo de alegria profissional e materna. Sou louca por elas: além da Amora Pêra, Paula Leal e Isadora Medella são um pouco minhas filhas, também. Fizeram um arranjo vocal muito bacana para a faixa ‘Pequeno Mapa do Tempo’ e arrasam nos vocais de ‘Todo Sujo de Baton’.”
Sobre a participação de Juliana Linhares na faixa “Galos, Noites e Quintais”, Sandra destaca: “Foi uma sugestão da Amora. Juliana é do grupo Pietá, é atriz e cantora do Rio Grande do Norte e está no Rio de Janeiro há algum tempo. É uma jovem voz nordestina, cheia de beleza e poder.”
Não dá para falar deste álbum sem mencionar os nomes dos instrumentistas participantes: Eduardo Souto Neto, Camila Dias, Jorge Helder, João Lyra, Daniel Lopes, Zé Leal, Jamil Joanes, Jurim Moreira, Rafael Meninão, Cristóvão Bastos, Coe Bell, Zé Canuto, Jessé Sadok, Marcelo Martins, Danilo Sinne, Aldivas Ayres, Walter Rios, Amora Pêra. E no coro, a já citada Amora Pêra, Paula Leal, Isadora Medella, Ana Basbaum, Eliane Sobral, Lucas Ariel, Daniel Alcoforado e José Milton.
Matheus Luzi – Em 50 anos de carreira artística, você havia gravado apenas um álbum, na década de 80. O que, de fato, fez você voltar ao estúdio? Foi uma inspiração da obra de Belchior, mas, ao mesmo tempo, de realmente voltar para a música?
Sandra Pêra – Acho que as duas coisas! Uma está ligada à outra. Eu estava de saída das Frenéticas, queria construir uma carreira solo e foi isso que tentei fazer na época. Eu estava escrevendo muitas letras, com vários parceiros. O Liminha foi ouvindo as minhas coisas, gostou e propôs gravarmos um disco. Tudo aconteceu muito rápido.
Naquela época, o Heleno de Oliveira estava na diretoria da gravadora Warner Music e ele apostava muito em mim, queria que eu gravasse. Mas realmente o disco não fui o sucesso como o das Frenéticas e eu fiquei meio perdida ali. Como eu precisava trabalhar, fui fazer teatro, que foi onde eu comecei – já que venho de uma família de atores e atrizes. No Brasil as coisas sempre foram muito complicadas para nós artistas, e assim fui seguindo a minha carreira.
Em 2014 eu tive uma ideia, junto com o Mimi Lessa (guitarrista das Frenéticas e meu amigo até hoje), e decidimos chamar a Dhu Moraes, que além de ex-companheira de Frenéticas é muito minha amiga. Nos juntamos os três e fizemos alguns shows, mais pelo prazer de voltar a cantar, mesmo. Foi um show que começou simples, mas depois ganhou uma banda e acabou sendo registrado em lançado em DVD, pela Biscoito Fino.
Um pouco depois, em Aí, 2018/19, resolvemos fazer o espetáculo “70.doc – Década do Divino Maravilhoso”, musical dirigido por Frederico Redler. Fomos convidadas – eu, Dhu Moraes, Leiloca e a Baby do Brasil. Estávamos muito animados com esse projeto, tínhamos um show no Rio quando a pandemia chegou e nos fez cancelar o espetáculo.
Já em meio à pandemia, em um jantar na casa da Kati Almeida Braga, dona da Biscoito Fino, ouvimos o álbum “Serenatas”, do Fagner, que estava sendo lançado. Quando ele começou a cantar “Mucuripe” eu fiquei encantada, liguei na hora para o José Milton, produtor do disco, para parabeniza-lo. Foi quando a Kati falou: “Por que você não grava um álbum só de músicas do Belchior?”. Aquilo bateu com força na minha cabeça e no meu coração. Respirei fundo e perguntei: Você tá falando é sério? Vai lembrar disso amanhã!?” (risos). No mesmo dia, ela ligou para o Zé Milton e aí tudo aconteceu. Convidei a Amora Pêra, minha filha, porque confio muito na musicalidade dela, para produzir junto com ele, novamente, tudo aconteceu muito rápido.
“Eu sempre fui dos palcos. Pensei em fazer arqueologia e psicologia, mas não teve jeito. O palco é meu berço!”
Matheus Luzi – Antes da pandemia você já estava fazendo show, então?
Sandra Pêra – Sim! Eu sempre fui dos palcos. Pensei em fazer arqueologia e psicologia, mas não teve jeito. O palco é meu berço!
Matheus Luzi – Inclusive a sua família é da arte.
Sandra Pêra – Sim! É muito difícil vir de uma família de atores e fazer outra coisa. Lá em casa, quando saia alguém para trabalhar, era para ir para os palcos. Sou filha de uma família que sempre sobreviveu do teatro: todos nós sempre tivemos muito prestígio, mas pouco dinheiro…
Matheus Luzi – É engraçado que até os artistas prestigiados no Brasil passam dificuldades financeiras.
Sandra Pêra – É! A gente até vê artistas fazendo vaquinhas para ajudar outros artistas. Mas ainda bem que podemos contar com instituições que ajudam os artistas brasileiros, como o Retiro dos Artistas, do Rio de Janeiro. É um lugar que vive de doações que guarda muitos que não tem para onde ir.
“Eu fui ouvindo essas músicas e me encantando pelas palavras. ‘Galos, Noites e Quintais’ já mostra a linda poesia do Belchior. Eu só mudei uma palavra: no verso que fala em ‘Tempo Negro’: coloquei ‘Tempo Feio’. Mudança por motivos óbvios.”
Matheus Luzi – Ainda nessa questão, quem era a Sandra no seu primeiro disco e a Sandra que grava este álbum agora em 2021?
Sandra Pêra – Tem uma essência, tem uma menina, uma esperança, um fogo e uma juventude que permanecem! Eu não sou de ficar contando os números, os anos que já vivi, mas é claro que eu comemoro com bastante entusiasmo cada aniversário meu.
Fora isso [o fogo], existia uma energia juvenil real e até uma certa inexperiência de minha parte, apesar de toda a trajetória com as Frenéticas. Era uma loucura sermos um grupo só de mulheres, ainda mais naquele momento. Tudo era espontâneo, a gente vivia o rock n’ roll, as drogas, a diversão, noitadas sem dormir. Fazíamos três, quatro shows em uma noite. Enfim, foi tudo muito bonito, maravilhoso, mesmo!
Algumas coisas que aconteceram naquele primeiro disco foram muito boas. Todas as músicas eram escritas por mim. Olhando hoje, eu acho que eu cantaria diferente, em tons diferentes. Na época eu intuía que algo estava errado, mas não sabia exatamente o que era. Acho que tem muito a ver com a questão da colocação da minha voz. Nesse disco de agora eu cantei do jeito que eu realmente queria. Antes tinha aquela coisa de subir o tom, de rasgar a voz, então entrei no embalo, mas agora eu cantei na entonação certa, com a minha voz grave.
Nós gravamos “Sujeito de Sorte” duas vezes. Depois da primeira vez, eu comentei com o Zé Milton que não queria cantar naquele tom: queria realmente estar confortável no meu tom.
Esse trabalho de agora reflete também a minha experiência de vida. Hoje eu conheço pessoas e vivi coisas que eu não tinha vivido ainda. Eu tinha 20 anos e achava que já tinha vivido muito, mas realmente hoje eu sei bem mais.
Matheus Luzi – A respeito das canções de Belchior que você gravou, o que você tem a dizer? Por quê a escolha dessas músicas e não outras?
Sandra Pêra – Foi uma escolha bastante natural e espontânea. Eu não queria cantar “Como Nossos Pais” e “Coração Selvagem”, por exemplo, porque a Ana Carolina já tinha feito uma versão de bastante sucesso: queria mostrar outras coisas do Belchior.
Eu fui ouvindo essas músicas e me encantando pelas palavras. “Galos, Noites e Quintais” já mostra a linda poesia do Belchior. Eu só mudei uma palavra: no verso que fala em “Tempo Negro”: coloquei “Tempo Feio”. Mudança por motivos óbvios.
O jeito que o Belchior coloca as palavras é muito lindo. Em “Paralelas” ele fala “Como é perversa a juventude do meu coração…”. É muito lindo o jeito como ele traz as palavras, os conceitos, a mensagem. Ele era um louco inteligente. Só fui me dar conta de tudo isso ouvindo suas músicas com mais atenção.
Tinha uma música que ia entrar e que acabou não entrando, chamada “Balada de Madame Frigideira”, que ele fez para uma geladeira! É espetacular, teatral, fomos para o estúdio com ela, mas a Amora começou a pensar que não seria interessante grava-la. Se você prestar atenção na letra, é uma loucura: ele coloca a geladeira como uma mulher. Eu queria muito cantar essa música pela teatralidade que ela tem, as referências, as citações, mas acabei concordando em tirá-la. Enfim, não há muita explicação do porquê dessas canções e não outras.
Matheus Luzi – Qual a importância e relevância de Belchior e suas canções na sua vida pessoal e profissional?
Sandra Pêra – Eu li esses dias o novo livro sobre o Belchior, que percorre todo o caminho que ele fez até a sua morte, no Sul. É uma loucura o livro, terminei com muita tristeza. Fiquei apaixonada pelo Belchior, ainda mais agora que gravei este álbum. A vida pessoal dele foi muito difícil: gente conhece o artista, mas o ser humano é muito complicado até de falar.
A importância do Belchior na minha vida é grande. Ele quase foi Padre, quase foi médico e no livro você conhece toda essa loucura. Ele era de uma família humilde e numerosa, estudou, fez faculdade, e tinha aquela cabeça confusa e genial. Eu fico pensando que o Belchior era gênio, de QI super alto. Para mim, ninguém soube dar essa dimensão a ele na época. Hoje em dia parece que o Belchior virou moda, mas ninguém vira moda à toa.
“Eu fico pensando que o Belchior era gênio, de QI super alto. Para mim, ninguém soube dar essa dimensão a ele na época. Hoje em dia parece que o Belchior virou moda, mas ninguém vira moda à toa.”
Matheus Luzi – É aquela história do artista brasileiro, ele precisa morrer para ser reconhecido… Espero que um dia isso mude!
Sandra Pêra – Exatamente! O perigo é quando morre e nem assim tem o reconhecimento. E com todas menções a ele recentemente, seu nome ganhou força. Eu não sabia que tudo isso estava acontecendo em torno dele, fui saber no estúdio. Essa ideia de reviver o Belchior está no ar. É isso que eu penso! Vejo ele hoje (distante), ouvindo as músicas dele, lendo o livro, aquele final trágico… e fico achando que Belchior foi uma criança velha, sabe? Tem umas pessoas que tem alma velha. Eu sinto em Belchior uma alma muito séria, muito estudiosa, muito “divina comédia humana”.
Matheus Luzi – No álbum, você contou com as participações vocais de Ney Matogrosso, Zeca Baleiro, grupo Chicas e Juliana Linhares. Como foi trabalhar com esses artistas?
Sandra Pêra – Por partes: Ney eu conheço desde a época das Frenéticas. Eu, Regina Chaves e Lidoka moramos na casa dele. Quando o Ney saiu nós continuamos lá e ele foi morar na casa ao lado. Então, no auge do sucesso de Frenéticas, o nosso prédio no Leblon era um festival de alegria, vivemos loucuras juntos, éramos muito próximos. Nós o convidamos e ele aceitou e isso foi a maior alegria: eu queria muito cantar com ele “Velha Roupa Colorida”, pela nossa própria história. Além de ser o Ney, né?! É engraçado porque tem muita gente que acha a nossa voz parecida, mas eu particularmente não acho [rsrs].
Com o Zeca Baleiro eu trabalhei em 2000, num espetáculo sensacional em São Paulo e no Rio de Janeiro. Éramos 100 pessoas no palco, fizemos o espetáculo em São Paulo e depois no Rio. Ficamos mais próximos, mas não tanto, éramos colegas. Pedi para o Zé Milton ligar para o Zeca e ele aceitou. A gente foi muito feliz na gravação.
A Juliana é uma pessoa que me diziam que eu deveria conhecer: “Sandra, você precisa conhecer. Ela é do grupo Pietá”. Ligamos para o produtor Marcus Preto que não só conhecia a Juliana, como estava produzindo o EP dela. Ela foi linda e a gravação foi uma alegria! Ela é de teatro, está no Rio de Janeiro e agora está lançando o álbum “Nordeste Ficção”.
Eu sempre fui fã das Chicas, conheço todas desde que eram crianças. Elas começaram ainda na adolescência e eu ia em todos os shows, aplaudindo e curtindo. Os vocais em “Todo Sujo de Batom” são delas.
Nas fotos do álbum estamos todos de máscara, queria que isso fosse registrado. A capa é da designer Antonia Ratto, que fez essa arte linda, com a imagem do Belchior.
Hoje é tudo digital, mas eu ainda gosto do produto físico, do disco físico. É bom lembrar que não é só Sandra Pêra e Belchior: tem toda uma equipe por trás do projeto. Eu sempre gosto de falar de cada pessoa que fez parte.
Matheus Luzi – Sua resposta já abre espaço para você falar da equipe como um todo do álbum. E aproveitando o gancho, nos fale como foi todo o processo de produção e gravação do disco.
Sandra Pêra – Já citei algumas pessoas, incluindo a Kati, da Biscoito Fino, que foi quem deu a ideia do disco. Então, tudo isso faz parte da história como um todo. Cada arranjador trouxe um músico. Pelo disco passaram várias feras da música e todas essas pessoas foram muito importantes para o resultado final! Destaco também a Amora Pêra. Ela foi também a minha coaching. O mesmo com o Zé Milton também. Os dois estavam sempre buscando o melhor para o disco. Estou muito satisfeita com tudo!
“Mas assim que tiver a chance, quero fazer o show do álbum (mas, agora fiquem em casa!).”
Matheus Luzi – Depois de “Sandra Pêra em Belchior”, o que vem pela frente na sua carreira artística?
Sandra Pêra – Eu acho que virá um show, só não sei quando. Eu estou nesse processo de lançar, de divulgar o disco, quero que as pessoas ouçam, quero que percebam o disco, que me ouçam. Quero que todos escutem! Estou nesse trabalho de divulgação. Mas assim que tiver a chance, quero fazer o show do álbum (mas, agora fiquem em casa!).
Matheus Luzi – Agora deixo você a vontade para falar o que quiser.
Sandra Pêra – Acho que todos nós devemos ser mais atentos aos nossos talentos, nossos artistas. Não podemos deixar passar um outro Belchior. Temos que ouvir todo mundo e respeitar a todos. Sem preconceito nenhum, nem limitados a uma coisa só. Eu gosto muito de música e gosto de muita gente também: Zeca Baleiro, Paulinho Moska, Mart’nália, amava a Cassia Eller, e por aí vai.