2 de maio de 2024
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Teatro, música e poesia – Esse é o projeto MEB

DuHarte Fotografia / Divulgação.

Na contra maré de músicas formatadas para alcançar o máximo de streamings, surgiu a MEB – Música Extemporânea Brasileira -, um projeto que tem a teatralidade, a música e a poesia como as queridas ferramentas de trabalho.

Nesse cenário de puríssima arte, o compositor Zé Luiz Rinaldi e a cantora Ticiana Passos, criadores da MEB, a proposta é “resgatar a música” que grande poemas escondem, sejam eles de autores brasileiros ou não.

Apesar do que foi dito na primeira frase, a MEB possui mais de cinco mil ouvintes mensais somente no Spotify, distribuídos em um álbum e seis singles. Talvez seja essa forma popular de encarar a poesia que tanto chama a atenção do público e a nossa da Arte Brasileira.

Por isso, nós conversamos com Zé Luiz Rinaldi. A entrevista, você confere a seguir!


Todas as respostas são de Zé Luiz Rinaldi

Matheus Luzi – Vocês acreditam que é possível popularizar a literatura? Seria esse um dos objetivos da MEB?

MEB – Existem dois modos de olhar para a pergunta e um deles não me atrai: processar a literatura para que fique palatável. Por outro lado, sim, acredito na possibilidade de provocar as pessoas à poesia. Criar acessos que possam romper as dificuldades, a má compreensão ou o desinteresse inicial. E, principalmente, deixar aparente as ofertas da poesia para a compreensão de quem somos e do mundo. Escancarar que o saber poético é preciso e precioso. Que não é balela. Que não é açucarado. A criação poética é realização rigorosa. É um saber em forma de experiência e é assim que toca a quem para ele se abre.

O programa “O ar que falta”, que realizamos esse ano, é voltado especialmente para os estudantes, por exemplo. Nele a obra poética de diversos autores é pensada em sua relação com a criação e a vida, ao mesmo tempo que estabelecemos pontes e vínculos entre os diversos campos da arte.

Sim, é preciso seduzir para a poesia. Depois é com ela.

Matheus Luzi – Como é o trabalho de musicar um poema? Qual a diferença de fazer o mesmo processo em uma letra escrita já nos moldes de canção?

MEB – Costumo evitar a expressão “musicar um poema” no que me proponho. É que tento encontrar a música do poema. Escuto-o repetida e amorosamente, até que sua música se ofereça. Musicar, e isso é apenas um exagero para fazer visível o que quero dizer, pode parecer como forçar o poema a uma música que lhe é estranha.

Não há propriamente uma diferença, mas dificuldades. Em geral, versos criados para ser música já seguem ritmos, divisões e estruturas que são familiares na música popular. Além do que, há a questão do vocabulário. Palavras pouco usadas no cotidiano, os silêncios do poema, as rupturas e variações, etc. A Björk compartilhou uma matéria sobre o estudo feito pelo Word Tips, abordando o vocabulário de alguns artistas em suas composições. Isto é, a riqueza ou não desse vocabulário. Se pensarmos que o desaparecimento de expressões atinge a língua de modo amplo e que a perda dessas palavras corresponde a sentidos que serão esquecidos e, finalmente, perdidos, é algo que devemos levar em conta.

“[…] é preciso seduzir para a poesia. Depois é com ela.”

Matheus Luzi – Dentre os lançamentos da MEB, haveria algum ou mais que vocês gostariam de destacar?

MEB – Caramba, que difícil… vou destacar os poetas: Emily Dickinson, Orides Fontela, Fernando Pessoa, Rainer Maria Rilke, Paulo Leminski, Georges Bataille…

Matheus Luzi – De que maneira vocês escolhem uma obra para ser trabalhada? Creio que deve ser muito difícil essa decisão.

MEB – Olha, não posso dizer que seja uma escolha propriamente dita. Tem uma lida com os poemas. Sou mais curioso que estudioso. Vou lendo. Sigo pistas dos próprios poetas. E vou sentindo as marcas do que leio. Depois volto. Em alguns, não paro de voltar. Escuto-os. Então, é sinal de que devo trabalhar.

No primeiro disco foi uma espécie de seleção no tempo, que depois organizei com um material próprio. Agora, no “Cabeça Doce” (próximo disco), fui movido pela urgência das questões que vivemos. Mas esse processo também é, primeiramente, sensível e intuitivo. O que, afinal, diz praticamente o mesmo. É por estar atento a tudo que me cerca e toca, que movo meu trabalho, minha atenção e meus esforços.

“Costumo evitar a expressão “musicar um poema” no que me proponho. É que tento encontrar a música do poema. Escuto-o repetida e amorosamente, até que sua música se ofereça. Musicar, e isso é apenas um exagero para fazer visível o que quero dizer, pode parecer como forçar o poema a uma música que lhe é estranha.”

Matheus Luzi – Quais são os feedbacks que vocês recebem a respeito do projeto?

MEB – Rsrs, O público do MEB costuma ser silencioso. O que, se pode parecer estranho ao burburinho do nosso tempo, comprova que tocamos a sua disposição para a escuta. Uma primeira reação é a admiração pela beleza. Uma espécie de susto bom. Depois, são surpresas de descoberta, tipo: “Parece que conheço essa música há muito tempo”; “Nossa, lembrei coisas que já estavam apagadas”; Ou, “Estou me sentindo tão leve”; e coisas assim. Acho que, como a poesia, o projeto provoca as pessoas a se perceberem.

Agora que começamos uma série de ações para o lançamento do “Cabeça Doce”, estamos vendo números muito interessantes. O primeiro single, “Canção do Anjo”, em duas semanas já passou das 18.000 views, no YouTube e 8.000 plays, no Spotify. Não falo pela quantidade, que nem é muita para esse universo de streaming, mas imaginar que um pequeno trecho da peça de Lorca esteja chegando a essas pessoas com força e atualidade nos enche de alegria.

Matheus Luzi – A partir desses comentários, vocês já têm uma noção de até onde a MEB pode chegar?

MEB – Eu e a Ticiana Passos, minha parceira no Projeto MEB, somos cria do Teatro. Logo, sabemos o que devemos fazer, mas não temos a menor ideia de onde o trabalho chegará. Transformamos o pouco em muito e a precariedade em virtude.

O público do MEB já encontrou as canções/poesias em saquinhos de pipoca, em salas de estudo, em palcos, em paisagens lindas, em festas e feiras. Já fomos para a rua, para casas, para longe e sempre encontramos sorrisos acolhedores.

Trabalho para que além do sucesso artístico, todos os parceiros do projeto possam ter retornos efetivos. Mas, como poeta, sei muito bem que não estamos na mira do mercado.

“[…] como poeta, sei muito bem que não estamos na mira do mercado.”

Matheus Luzi – Listem e comentem os trabalhos já lançados e, se possível, o que virão pela frente.

MEB – É importante lembrar que o MEB – Música Extemporânea Brasileira é um projeto. Dessa forma, são várias as nossas ações: livros, discos, filmes, oficinas, shows, programas e por aí vai.

Dos livros, chamarei a atenção dos dois últimos: “poema para o ator” e “viver é poesia”. O programa “O ar que falta: pensamento, sociedade e poesia”. O nosso primeiro cd “BOCA do MUNDO” e o novo disco que chegará em outubro “Cabeça Doce”. E dois clipes, “Pra você gostar de mim, que deixa ver a nossa busca incessante por uma escuta abrangente e atualizada da realização poética e “SIM”, nosso clipe que foi lançado em 03 de setembro. Penso que esse clipe apresenta muito bem o que somos, o que desejamos e como avançaremos.

Matheus Luzi – Há alguma(s) história(s) ou curiosidade(s) interessante (s) para nos contar sobre o assunto?

MEB – Falei com o Mauro Santa Cecília, amigo e poeta, sobre o disco e o projeto do MEB. Demorou para nos encontrarmos e acabou que a primeira vez que ele escutou foi em uma apresentação.

Quando acabou ele veio falar exaltado: “Mas é samba de verdade! É samba mesmo!”

Acho que ele não tinha acreditado quando eu disse que o Fernando Pessoa era sambista. Rsrs

(“Hoje de Manhã”, que abre o cd “BOCA do MUNDO”.)

Estávamos trabalhando no material para o disco “Cabeça Doce”e havíamos escolhido uma canção do Torquato com o Carlos Pinto, “Três da madrugada”. Acho que foi logo depois do primeiro ensaio que fizemos dessa canção, um amigo me perguntou: Você gostaria de um poema inédito do Torquato Neto? No primeiro momento achei que fosse uma brincadeira. Não dava para acreditar, mas era pra valer!

Torquato deu a seu parceiro Nonato a canção para que ele fizesse a música. Depois Torquato nos deixou (1972) e durante cerca de quarenta anos a música não veio. Nonato também partiu (2014), mas antes deixou a canção com o amigo Guará que, para minha felicidade e surpresa, achou que ela devia chegar a mim.

Avisei pra turma: ganhamos um poema do Torquato. Agora calma, que a canção vai demorar!

Pois bem, cheguei em casa gripado e com febre. Deitei. O poema não saía da cabeça. Então, o peguei para ler. Uma, duas vezes e comecei a cantarolar alguns versos. Quando dei por mim, o violão estava no colo, não tinha dormido, nem comido e a música já estava ali.

(Essa chega no novo “Cabeça Doce”.)

“O público do MEB costuma ser silencioso. O que, se pode parecer estranho ao burburinho do nosso tempo, comprova que tocamos a sua disposição para a escuta. Uma primeira reação é a admiração pela beleza. Uma espécie de susto bom. Depois, são surpresas de descoberta, tipo: ‘Parece que conheço essa música há muito tempo’; ‘Nossa, lembrei coisas que já estavam apagadas’; Ou, ‘Estou me sentindo tão leve’; e coisas assim. Acho que, como a poesia, o projeto provoca as pessoas a se perceberem.”

Matheus Luzi – Sintam-se à vontade para falarem o que quiserem.

MEB – Todos vocês que tem o peito aberto e o sorriso largo, não esmoreçam! Viva a delicadeza e a força da poesia!

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Fundador e editor da Arte Brasileira. Jornalista por formação e amor. Apaixonado pelo Brasil e por seus grandes artistas.