“Vício Elegante” é o nome do último álbum de estúdio do nordestino Belchior, lançado em 1996, e que sem o “acaso” da participação de Ricardo Bacelar, não seria assim um álbum tão elegante.
Não creio na necessidade de dizer mais. Esse confuso primeiro parágrafo é apenas para introduzir você em uma história emocionante, contada com exclusividade à Arte Brasileira pelo próprio Ricardo Bacelar, em novembro de 2018.
O ano era 1996, no Rio de Janeiro. Recebi um chamado do produtor Guti Carvalho, um dos fundadores da Warner no Brasil, que comandava a gravadora GPA, à época, para uma reunião com Belchior. Ele me convidara para ajudá-lo a produzir e assumir a direção musical do próximo disco do artista.
Belchior chegou na hora marcada, com seu sorriso largo e seu charuto, relembrando os velhos tempos em que tocamos juntos. Após uma conversa descontraída, Guti perguntou a Belchior onde estava o material novo. Ele respondeu que não tinha, naquele momento, nenhuma música nova.
Comunicou que desejava fazer mais um disco, regravando seus antigos sucessos, como “Paralelas” e “Como Nossos Pais”, com novos arranjos. Guti ficou pensativo, refletindo por alguns instantes, e fez a seguinte sugestão: “Vamos fazer um disco de intérprete”, projeto nunca antes abraçado pelo artista. Bel gostou da ideia imediatamente. Começamos a trabalhar, no estúdio, o repertório que poderia ser gravado.
Eu, ao piano, e ele com o microfone em punho, experimentávamos algumas canções, tentando imprimir releituras, tendo como ponto de partida sua interpretação forte, original e espontânea. No processo de preparação do disco, Belchior olhou para mim e disse: “Ricardo, vamos fazer uma música nova. Queria um material inédito no disco”. Pegou a caneta e o papel, e foi discorrendo sobre a história de um romance com uma gueixa, pontuando seus “versos perversos”.
Foi nesse instante que começamos a cantarolar uma melodia que iria se juntar à letra para se transformar no que seria a composição “Vício Elegante”. Após uma rápida maturação das estrofes e da estrutura da música, gravamos, rapidamente, o material produzido em uma fita cassete que ainda hoje guardo com carinho.
No decorrer das gravações, passamos bons momentos. Belchior era pontual, aplicado e muito organizado. Chegava ao estúdio com seu potinho de mel, sempre de bom humor, e nos cativava com seu timbre de voz marcante. Certo dia, comecei a ouvir em uma gravação um ruído que vinha junto de sua voz. Parei imediatamente a gravação e fui verificar o ruído que estava agregado à voz. Após um exame minucioso, percebi que a emissão da voz do Belchior era tão forte que saturava a cápsula do sensível microfone. Pedi para ele afastar um pouco o rosto do microfone e o ruído desapareceu.
Sua voz era muito firme e ele tinha muita experiência em estúdio, sabendo imprimir emoção e espontaneidade nas trilhas de voz que colocava. Algumas delas nasciam tão bem construídas que nem era necessário refazê-las. Ele aquecia a voz e, algumas vezes, tínhamos que fazer somente o reparo de uma frase ou outra. A interpretação vinha quase pronta, como por encanto. Já tínhamos tocado juntos algumas vezes, mas os dias de estúdio nos proporcionaram bons resultados e o amadurecimento de uma boa amizade. Logo após, ele me convidou para dirigir discos de sua gravadora, Camerati. Pouco depois, eu o convidei para participar de uma faixa do meu disco “In Natura”, em que interpretou uma bela letra de Jorge Hélio Chaves.
“Vício Elegante” foi a última letra inédita que Belchior escreveu e gravou em seus discos de carreira. Ele teve muitos poucos parceiros e foi uma honra para mim ter sido coautor dessa bela composição. O arranjo escolhido resultou em um andamento mais rápido. E a música batizou o disco “Vício Elegante”, penúltimo álbum de sua carreira. Passados os anos, sempre nos encontrávamos e falávamos ao telefone. Um dia ele me pediu que eu gravasse seu repertório ao piano solo. Quem sabe um dia eu possa atender o pedido do amigo.
Após o longo período em que Belchior ficou recluso, tive conhecimento de sua partida, e fiquei muito triste e saudoso com a partida do amigo. Foram muitas as teses que tentaram explicar a razão de ele ter ficado tão resguardado. Eu considero que a tese do compositor e amigo Fausto Nilo é a melhor delas. Belchior tinha uma vocação para o claustro. Isso o fez entrar para o seminário e aparecer pelas ruas de Fortaleza com o hábito de padre. Belchior leu os clássicos e era apaixonado por Dante Alighieri. Tinha uma caligrafia invejável, adotando um estilo medieval.
Após sua passagem, estava a escutar algumas gravações antigas e encontrei a fita cassete original que guardava o rascunho da música que fizemos, e fiquei recordando aqueles dias em que produzimos aquele material de tanta qualidade. Fui convidado, tempos depois, para fazer uma participação em um evento de homenagem ao Belchior no teatro de Aquiraz, Ceará.
Pouco antes de sair de casa, sentei ao piano para preparar o que iria apresentar naquela noite. Foi quando comecei a cantarolar o “Vício Elegante” e, levado pela emoção do momento, fiz um novo arranjo de piano e voz, diminuindo bastante o andamento e inserindo uns rubatos que deram um clima bem intimista. Naquele momento, minha esposa entrou e ficou muito emocionada com a versão e, chegando ao teatro, interpretei a música, embalado pela nostalgia e saudade do amigo.
Depois de ter lançado meu disco “Sebastiana”, após um copo de vinho com a amiga Délia Fischer, pianista, arranjadora e compositora carioca, traçamos uma produção elegante do “Vício Elegante”, em releitura com piano, voz e orquestra de cordas, escritas pela Délia. Foi então que marcamos os estúdios da gravadora Biscoito Fino e registramos a nova leitura do “Vício Elegante” que está disponível nas lojas e em um maravilhoso vídeo dirigido por Nando Chagas.
Belchior foi um dos grandes autores da música brasileira, e tive o prazer de subscrever um requerimento, ainda em trâmite, ao Governo do Estado do Ceará para que sua obra seja reconhecida como patrimônio cultural imaterial. Sempre que canto “Vício Elegante” nos meus shows, após a música, olho para o céu e quase consigo ouvir aquela voz quente que sempre me remete à sua poesia e personificação do rapaz cearense, latino-americano.
– Assinado por Ricardo Bacelar, em Novembro de 2018.