Artigo escrito em maio de 2024 pelo maestro Kleber Mazziero sob encomenda para a Arte Brasileira
Em fevereiro de 2023, em comemoração aos 110 anos do Museo Nacional de Bellas Artes de Cuba, seria realizado um concerto em Havana. Pianistas cubanos interpretariam obras de um compositor brasileiro. Eu fui o compositor escolhido.
Tomado pela honra, escrevi duas Sonatas para Piano, enviei as partituras a três pianistas cubanos, e fiquei temeroso pelas interpretações: dois pianistas eram estudantes de piano, jovens de 15 e 16 anos de idade… certamente ainda não teriam técnica, nem maturidade interpretativa suficientes para executar peças tão complexas.
Temeroso, fui ao concerto; fui a Havana, a Cuba, à Ilha da Utopia. Como a ocasião era, para mim, de grande monta, contratei uma equipe de Cinema para filmar o concerto; afinal, apesar de identidades culturais tão próximas, não é todo dia que a música brasileira se encontra com a música cubana – notadamente a música erudita contemporânea.
Chegamos ao aeroporto de Havana. Tomado pela miopia que caracteriza os estultos, eu só pensava em minhas preciosas notas musicais sendo tocadas por mãos de jovens tão inexperientes. Pegamos um taxi. Nem o carro antigo, nem o motorista cordato, nem a pequena estrada que leva à cidade me desensimesmavam; minha obra musical, tão importante, não seria tocada com a devida profundidade.
Um pequeno trecho de estrada leva à entrada da cidade. De um lado, a Praça da Revolução; de outro, o Memorial a José Martí. Lindíssimos, amplos, modernos, asfaltados. De que pobreza falam que existe aqui? Qual nada; minhas notas é que são elas.
Entramos na cidade propriamente dita. Aos poucos, o asfalto, a modernidade, a amplitude, a beleza, foram dando lugar a ruas sem pavimento, a construções que sobrevivem desde o final da década de 1950, à estreiteza de calçadas sem calçamento; a uma réstia de beleza tão específica que a miopia não permite ver; estava ali a pobreza de que tanto falam. A importância de minhas notas foi minguando, a sonoridade complexa de minhas partituras foi desaparecendo; em lugar dela, outra espécie de complexidade – mais profunda, mais real.
Ainda dentro do carro, os cinegrafistas desembalaram as câmeras e começaram a filmar aquela realidade tão específica quanto intrigante, tão dolorosa quanto cruel.
Chegamos à hospedagem: uma construção congelada no tempo nos abrigaria por 10 dias. Fomos comer: um pequeno restaurante e uma garçonete nos alimentariam pelos próximos 10 dias. Andamos ali pela Habana Vieja, lugar que nos transformaria em menos de um dia. Os cinegrafistas gravavam tudo e, rapidamente, o filme que imaginei ser sobre mim, sobre minha tão valiosa obra musical, deixava de ser apenas sobre o concerto e passava a ser também sobre aquele lugar, cuja forma remetia a uma época próxima ao ponto onde a vida ali estacionara: o início da década de 1960, ao tempo do embargo.
Caiu a noite de nosso primeiro dia em Havana. Na manhã seguinte, conheceríamos o teatro no qual se realizaria o concerto; de tarde, o primeiro ensaio dos pianistas. Impossível dormir. Pelo concerto? Qual nada; pelo impacto com que a forma daquele lugar nos atingiu. Mal sabíamos que o conteúdo provocaria um impacto ainda maior.
Amanheceu em Cuba. Fomos ao desjejum. Em “nosso” restaurante, “nossa” garçonete apresenta as “tables” do café da manhã. Peço a “table 2”, com frutas. A garçonete alerta:
– Devo trocar a fruta de seu pedido, não?
– Por quê?
– Ontem o senhor pediu para não pôr orégano na pizza, por causa de sua alergia; imagino que tenha alergia a abacaxi também.
– Eu tenho…
– Então; manga, que tal?
A diretora do filme olhou meus olhos atônitos, e pude ver em seus olhos que ela encontrara o fio da meada que nos levaria ao conteúdo. Do filme? Também, mas sobretudo daquele lugar.
Fomos conhecer o teatro.
O teatro é dentro do Museu Nacional de Belas Artes. O lugar é lindíssimo, há obras de arte moderna já no saguão, e o próprio saguão e seu jardim interno são em si uma obra de arte. O acervo do Museu tem mais de 30 mil peças da arte cubana; as peças estão agrupadas em núcleos conceituais: a arte do tempo em que Cuba era colônia espanhola; da era pós-colonial, fim do século XIX, começo do XX; a Arte Moderna; a Arte Contemporânea. Além das obras de arte cubanas, há obras dos Renascimentos italiano e flamenco; do Barroco espanhol; da pintura britânica do século XVIII; da pintura francesa do século XIX.
Boquiabertos, fomos ao Teatro do Museu. Acústica perfeita, equipamento de som e gravação excelentes, iluminação extraordinária. Piano, acomodações, camarins; tudo funcionando perfeitamente, manutenção impecável. O teatro e o Museu, mais-do-que-centenáios, cheiram a novo.
Visto o local, fomos andar pelas cercanias, para esperar pelo ensaio da tarde. Na porta do Museu, pergunto a um rapaz onde tem uma livraria. Meu sotaque denota:
– O senhor é brasileiro?
– Sou, por quê?
– Eu gosto muito da arquitetura brasileira… sobretudo do Niemeyer. O Museu de Arte Contemporânea de…
– Niterói?
– Isso!
– Você já foi lá?
– Não; conheço dos livros.
– Você é arquiteto?
– Não, sou pedreiro.
– Ah, por isso o seu interesse…
– Não só por isso; a gente estuda isso na escola.
– Na escola regular?
– É.
– Arquitetura? Niemeyer?
– É.
O conteúdo do filme se desenhava com tinta nítida: aquele povo. Que gente é aquela?
Fomos à livraria. Os livros são muito baratos. Pergunto à lojista qual o motivo daqueles preços. A impressão de livros tem incentivo estatal.
– Eu cheguei ontem, mas já deu para notar uma dificuldade econômica aqui em Cuba… mesmo assim o Estado investe na publicação de livros?
– Sim. Há uma contínua e sistemática publicação de obras literárias.
A diretora de nosso filme interrompeu a série de mais de 1000 perguntas que eu faria à livreira:
– Kleber… eles aprendem arquitetura na escola regular; eles conhecem o Niemeyer!, você se esqueceu?
Eu não tinha me esquecido; só custava a acreditar. Há um lugar no mundo em que, ainda que a comida seja escassa, a educação tem essa importância? Há. Em Cuba, o livro, a leitura, o conhecimento, são protegidos, são incentivados, são mantidos mesmo na mais cruel escassez de bens.
Voltamos ao teatro. A essa altura, minhas partituras, minhas notas musicais, tinham seu real valor: muito pouco, bem pouquinho, quase nada.
Entro no Teatro, Yanner Rascón está tocando uma de minhas Sonatas. Numa palavra: não há pianista igual. Sou maestro há mais de 40 anos; repito: não há pianista igual.
Yanner me apresenta aos estudantes: Liah Rivero e Angelo Jiménez fazem desaparecer todos os meus temores àquela altura já esquecidos. Virtuosismo técnico, maturidade interpretativa, música na ponta de cada um dos 10 dedos, que parecem 30 sobre as teclas. De onde vem tanto talento, tanta capacidade? Não me lembro de ter visto isso em lugar nenhum do mundo…
Yanner me observava e deve ter interpretado mal minha expressão facial estupefata. Apressou-se em justificar:
– Ela está tocando o 1º movimento um pouco mais lento do que você queria, maestro?
– De jeito nenhum…
– É que ela teve uns probleminhas com a comida e ficou sem estudar por uns dias.
Minha pequeneza perguntou:
– Que problemas com comida? Alergia?
– Não… ela e a família passaram um tempo difícil e ficaram sem ter o que comer.
A estupefação se transformou em… não sei dizer.
No dia seguinte, dei uma palestra no Conservatorio Amadeo Roldán. Fui recebido com a apresentação de um quarteto de saxofone de meninas com até 15 anos de idade. O salão estava lotado de jovens que conheciam todo o assunto sobre o qual fui falar: a música dodecafônica, suas implicações filosóficas e artísticas.
No outro dia, fomos até uma cidade próxima a Havana: San Antonio de los Baños. Lá, a Escuela Internacional de Cine y TV. Outra palestra, na sala de Cinema cujo nome é “Glauber Rocha”. A sala estava repleta de jovens, que conheciam todo o assunto sobre o qual fui falar: a direção de Cinema.
No outro dia, a gravação das duas Sonatas. Sem palavras. Só mesmo ouvindo o CD.
No outro dia, o concerto. Sem palavras.
A diretora de nosso filme e os cinegrafistas gravavam tudo, entrevistavam pessoas. Falamos com uma professora, que conhece Educação mais do que ninguém; com uma musicóloga, que conhece Música mais do que eu; com uma pianista popular, que toca muito melhor do que eu; com um bailarino, que dança como… nem sei dizer. Todos com seus talentos, seus conhecimentos, suas generosidades incomparáveis. E eu, todo o tempo, com uma interrogação e uma exclamação no semblante: Como eles podem ser tão bons (em todos os âmbitos dessa palavra)? Essa gente mal tem o que comer! Também carregava o meu semblante reticências: então é possível ser assim…
Dia de voltar. Fomos nos despedir da garçonete que cuidara tão bem de minha alergia:
– Vamos sentir saudades de você, Ana!
– Quem sabe a gente se vê no Brasil! Tem um programa lá que, de repente, quem sabe?…
– Que programa?
– Não tenho certeza… acho que se chama… “Mais Médicos”?
– Tem. Voltou a ter.
– Então, quem sabe?
– Mas só os médicos cubanos podem ir para o Brasil nesse programa, não?
– Sim; por isso. Eu sou médica, Kleber.
***
A você, que chegou até aqui comigo, permita-me uma pergunta: Para você, neste início de século XXI, o que seria uma utopia?
Uma ilha ensolarada? Uma ilha ensolarada, com as pessoas que você ama? Uma ilha ensolarada, com as pessoas que você ama, muito dinheiro no bolso? Uma ilha ensolarada, com as pessoas que você ama, muito dinheiro no bolso, saúde pra dar e vender? Parece bom. Pensemos nessa sua utopia:
Primeiramente, é notável que sua utopia parte de dois pressupostos dado pela natureza: não somente a ilha, mas a ilha ensolarada. Uma ilha constantemente nublada, assolada por furacões, não parece boa pedida. Tampouco soariam agradáveis aos seus ouvidos lindos dias ensolarados, porém vividos numa megalópole tomada por prédios, apinhada de gente correndo de um lado a outro, trombando em você, tossindo ao seu lado. Sua utopia requer da natureza o isolamento geográfico e a benesse das condições climáticas. Muito bem. Natureza.
É notável, também que, em seguida, sua utopia depende de um fator que não está restrito à natureza, mas inserido noutro âmbito, que requer um conceito: o conceito de sociedade; afinal, você não sonhou utopicamente estar sozinho na ilha ensolarada, mas estar na ilha ensolarada, com as pessoas que você ama. Natureza e sociedade.
É questionável, contudo, que sua utopia requeira muito dinheiro no bolso. O questionamento se fundamenta na necessidade do dinheiro numa ilha ensolarada, com as pessoas que você ama. Ora! Ou pedimos pouco da natureza – e deveríamos agregar condições de sobrevivência às condições climáticas –, ou desconfiamos de nosso próprio desejo geográfico e presumimos que, após uma estada na ilha, voltaríamos ao nosso habitat natural e, ali, necessitaríamos de dinheiro no bolso. Nossa utopia tem, então, um elemento temporal também. Natureza, sociedade e tempo.
Por fim, saúde pra dar e vender. Inquestionável. Somente saudáveis, você e seus amados desfrutariam da utopia; saúde para uma boa vida. Natureza, sociedade, tempo, vida.
Agora, por favor, imagine que essa ilha ensolarada existe, que não é sua utopia. Imagine, por favor, que ela existe, e que muito do que se precisa, lá tem: a natureza contemplou essa ilha com muito.
Imagine, agora, que essa ilha existe; que, lá, a natureza fornece muito do que se precisa; e que há algum dinheiro para se comprar as coisas que lá não há naturalmente, que a natureza não forneceu.
Ao imaginar tudo isso, é possível considerar passar um bom tempo nessa ilha, não? De todo modo, ainda que você queira voltar para o seu habitat natural, imagine que naquela ilha nasceram pessoas que vivem ali há muito tempo e que viverão ali todo o seu tempo de vida; toda a vida. Com saúde.
Assim, nessa ilha que você imaginou – na qual, eventualmente, você não vai morar, mas em que outras pessoas moram – há natureza, sociedade, tempo, vida: todos os elementos de sua utopia.
Pois bem, devo dizer: essa ilha existe. Há, na Terra, uma ilha ensolarada, na qual a natureza fornece muito, na qual há algum dinheiro, na qual se tem saúde – e acesso à Saúde –, na qual pessoas vivem há muito tempo e por todo o seu tempo de vida, na qual 11 milhões de pessoas têm vida. Existe e se chama Cuba.
– Verdade, Kleber?
– Verdade. Assista ao filme que fizemos lá. Assista ao filme que fizemos na Ilha da Utopia.
– Ora, Kleber, se existe, não é utopia!
– É utopia. Infelizmente, é utopia…
– Por quê?
– Porque há mais de 60 anos – há muito tempo, portanto –, o embargo econômico imposto a Cuba pelos EUA impede que à ilha cheguem bens de primeira necessidade que a natureza não provê. Há algum dinheiro, mas não há o que comprar. Fio dental, a natureza não dá; elevador, a natureza não dá; energia elétrica, a natureza não dá; asfalto, a natureza não dá. Feijão, a natureza dá, mas é preciso gás, botijões, tubulações, fogões para cozinhar o feijão; terra, a natureza dá, mas é preciso enxada, pá, arado para revolver a terra; queda d’água, a natureza dá, mas é preciso muito para fazer com que a queda se transforme em energia. Com algum dinheiro, é possível comprar gás, botijões, tubulações, fogões, enxada, pá, arado, muito. Porém… comprar de quem, se ninguém pode vender para mim? Lenta e paulatinamente estão matando aquelas pessoas; estão deixando aquelas pessoas morrer à mingua. Lenta, paulatina e escancaradamente.
– E eles vão morrer sem comida, sem higiene, sem o mínimo para a sobrevivência humana?
– Vão, nada. Aquela gente é tão forte quanto generosa; tão altiva quanto talentosa; tão grandiosa, tão doce, tão boa, que a maldade não consegue matar. Tenta, mas não consegue.
– Entendi, Kleber. Em Cuba tem a natureza generosa, tem algum dinheiro, mas há muito tempo aquela sociedade não tem vida. Por quê?
– Porque, um dia, ancestrais daquelas pessoas ousaram ter um sonho.
– Que sonho?
– O sonho de que todos fôssemos essencialmente iguais; de que entendêssemos que, essencialmente, todos somos diferentes entre nós, mas parte de um único corpo social; que todos somos um: a médica, a garçonete, o pedreiro, o arquiteto, o maestro, o pianista, o livreiro, todos somos um.
– Isso não é sonho; isso nada mais é do que a verdade. É tão óbvio, que até mesmo os mais estultos constatariam.
– É?
– É!, claro!
– Assista ao nosso filme. Você verá que ainda é um sonho. Um sonho distante. Um sonho tão distante de se realizar, que parece uma utopia. Infelizmente.
Sin embargo, uma utopia
Um filme de Fabiana Parra
Local: Reserva Cultural. Av. Paulista, 900. Telefone: (11) 3287-3529
De 20 a 26 de junho
Pré-estreia: 18 de junho