A população negra precisa estar conectada com a literatura, cultura e arte, dessa forma podemos estar conectados com a nossa ancestralidade e luta.
Estar diante da nossa ancestralidade é algo muito importante para nós e principalmente para o desenvolvimento das nossas crianças. Resgatamos a herança dos nossos antepassados e tudo aquilo nos constitui.
Ancestralidade pode ser uma palavra fora do seu entendimento, mas de antemão aviso que é algo importante, principalmente para a comunidade negra.
Estar conectado com a sua ancestralidade é estar de encontro com a fonte de pertencimento, que constrói o chão, o lugar, o espaço e outras origens. Posso dizer que é uma escrevivência diária. Como diz a escritora Conceição Evaristo: ‘’Acordar a casa grande’’. E se conectar com o conhecimento é fazer um grande barulho, porque a sociedade não está preparada para encarar a nossa evolução, nem as nossas descobertas. Nos encontramos como indivíduos e assim nos descobrimos com a nossa ancestralidade. O escritor Renan Wangler nos fala sobre isso na sua escrita e na sua grande obra: ‘’Palavra Rito: Frutos da Diáspora’’.
Para você, as nossas crianças estão longe da sua ancestralidade?
Costumo dizer que se quiser me conhecer leia meus textos, e essa pergunta a resposta se faz dita nesse texto:
CICLOS DA CABAÇA
As crianças e os idosos possuem um laço,
Os dois contemplam de perto o ancestral.
O recém-nascido acaba de chegar do Orum
E o idoso aguarda o retorno
A outra metade da cabaça
De onde os orixás observam nossa evolução.
O conceito de ancestralidade dentro de algumas filosofias africanas comporta os nossos antecessores, que viveram e contribuíram para nossa evolução enquanto seres humanos (NTU) no grupo étnico-linguístico Bantu, ainda a todos os seres que vivem e que ainda vão nascer, totalizando essa ancestralidade presente ontem hoje e amanhã. Logo seguindo essa visão de mundo, acredito que as crianças possuem uma sabedoria e verdade de quem está muito próximo dessa sagacidade ancestral.
O que a leitura de livros como o seu pode ajudar na conexão de crianças e adultos com a sua ancestralidade?
Penso que meu livro é um fruto da diáspora africana, e nele através da oralidade, tecnologia ancestral de construção e disseminação dos saberes ancestrais, presentes em cada texto, em cada relato poético desse registro / afeto. Fruto este que carrega as sementes que serão semeadas no cerne daqueles que o lerem. Até se (re)conhecerem:
AUTO (RE)CONHECIMENTO
Haja autoajuda
E “danças” de autodefesa
Para automaticamente
Não cairmos na automedicação,
Vícios e autoflagelação,
Nem perecer autômatos
Em autocomiseração,
Pois somos autossuficientes
Descendentes de autoridades,
Experientes em autopreservação.
Recuperando autoestimas
Reinventando autores,
Resgatando auto imagens.
Reescrevendo nossa história
Gerando reconhecimento
Dos malungos de batalha,
Irmãos nessa jornada,
A fim de reconquistar nossa potência,
Aquilombando sempre.
Para reexistir nosso UBUNTU
Reativo na fala ancestral
Nos saberes orais,
Pois só (re)conhecendo o passado
Resistimos o presente e
(Re)conquistamos nosso futuro.
O que te levou para esse caminho da escrita? Foi fácil chegar onde você chegou?
A escrita chegou na minha vida através da música, na adolescência busquei ter uma banda de rock, e na tentativa de compor as músicas comecei a escrever poemas, o desenvolvimento musical só se deu parcialmente muito tempo depois, mas a escrita se fez pungente e forte, enquanto forma de expressão no meu lugar.
LUGAR DE ESCRITA
Vejo, sinto e sobrevivo escrevendo
Seguindo no meu ato de escre(viver)
Os perrengues de viver, resistindo
Mas só sentindo, para real entender.
Vivemos uma visão a nós imposta
Sobre quais lugares devemos ocupar.
Quando inquieto busquei uma resposta,
Através da leitura, pude me situar
Diante do espelho, procurei entender,
Perceber o lugar que me impuseram,
Para analisar minuciosamente a história
Escrevendo e lendo a preta trajetória.
Diante dessa minha vivência escrita
Avistei o lugar onde almejava estar
Procurando nos meus semelhantes
Faces escritas de vidas instigantes.
Li nessas frontes o meu reflexo
Ali (re)conheci as escritas ancestrais
Assim pude me reconectar ao meu lugar.
Para nesse lugar, reescrever meu nexo.
Não existe facilidade para corpos pretos. Quando os grilhões não estão na carne se alojam na mente, precisei me tornar negro, consumindo escritas e vivências negras para chegar nesse ponto da parábola solar. Na filosofia Bacongo do grupo étnico-linguístico Bantu, somos como sóis vivos que nascemos e ascendemos como na trajetória solar.
METAMORFOSE
Sou um poeta em metamorfose
Me deparei com minha escrita
E vi um reflexo dos outros.
Dos clássicos, dos cânones,
Dos medalhões da literatura
Dos aspirantes a imortais.
Todos fora do meu eixo,
Fora do meu contexto
Fora do meu lugar de fala.
Sem conexão com minha essência
Sem relação com minha existência
Indiferentes à minha vivência.
Esse estalo se deu quando descobri
O óbvio que todos veem,
Na realidade observada em reações banais:
Nos apelidos da época da escola
Na vigilância atenta nas lojas
No olhar furtivo de cautela,
De quem ao se aproximar atravessa a rua.
Na abordagem frequente da polícia
Nos conceitos predefinidos,
Que chegam antes mesmo da fala.
Desde então criei meu casulo
E aqui busco me cercar de escritas pretas,
Amigos e influências irmãs
Olhares de origens semelhantes
Reconectando as raízes,
Revisitando a favela em mim.
Origem do meu jardim poético.
Buscando ressignificar minha escrita,
Meu olhar e minha expressão.
Até eclodir um novo poeta,
Que eu reconheça ao espelho.
Teremos surpresas com o próximo livro?
Sim eles já existem, estou buscando meios e fomentos para viabilizá-lo, deixo de spoiler o título, sua primeira parte é uma homenagem aquela primeira banda, origem do meu expressar poético: Elipse Contínua (Ou Escrituras Cíclicas). Há ainda o livro Infantil Feijão, onde narro em versos as peripécias de uma criança negra carioca, também em busca de meios ou fomentos para a viabilização.
Você chegou no seu objetivo ou tem muito mais a alcançar?
Enquanto há vida, há uma trajetória a ser percorrida. Meus escritos refletem e registram o produto dos atravessamentos e encruzilhadas que meus passos alcançam. Enquanto houver movimento haverá poesia a ser cometida.
Como homem negro você encontrou o desafio do preconceito na literatura?
O maior desafio é a autovalorização, pois fomos condicionados a um lugar onde é inconcebível a priori, sermos poetas, escritores, quiçá intelectuais. Uma vez que nos tornamos negros, nos apropriando da beleza e riqueza ancestral que a muito nos é velada, reconhecemos nosso protagonismo em nossas vidas. Aí nesse lugar, as montanhescas dificuldades impostas pela sociedade racista se tornam pedras, afiadas, agudas e doloridas. Vertem sangue e produzem chagas, mas ainda sim transponíveis, tamanha nossa grandeza desvelada.
ENEGRECER (SANKOFA)
É preciso enegrecer,
Tornar-se Negro.
O apagamento sistêmico
Faz nos acharmos neutros,
Vazios e imperfeitos.
Assim, nos racializaram negros,
Nos chamaram negros,
Nos taxaram necros,
Nos zombaram negros,
Nos Apontaram ímpios.
Depois vieram de comiseração.
Nos suavizaram morenos,
Nos olharam escurinhos,
Nos denominaram de cor
Nos aceitaram sob moldes.
É preciso enegrecer
Além da pele escura.
É preciso tornar-se negro
Conhecer o passado
E reconhecer o ancestral
Desmistificar o âmago negro,
Ressignificar o que é ser negro
Buscar nas raízes a real beleza
Além das pesadas cruzes
Que nos colocaram aos ombros.
Não se fartem de piedade,
Pois a miséria racial
Está nos olhos de quem vê,
Está na boca que nos chama,
Está nas mãos que nos apontam.
É preciso enegrecer
De dentro para fora.
Ascender a negritude,
Na nossa árvore genealógica
Buscar a seiva da verdade velada
Sobre a terra do esquecimento,
Onde fomos trazidos à força
E soterrados de mentiras, degradações,
Humilhações e desprezo.
Buscar a água espiritual da vida.
E como semente, pelos nossos germinada
Brotar frondosos, frutíferos, fortes e belos,
Tal como ramos e troncos da árvore sagrada,
Pois quando as raízes são profundas
A árvore rompe concretos e estruturas.
É preciso enegrecer
Tornar-se negro.
Olhar para trás
Voando para frente
Carregando a semente enegrecida do futuro.
Renan Wangler
Leia:
Palavra Rito: Frutos da Diáspora
Sobre Renan Wangler
Oriundo da Cidade Alta, subúrbio do Rio de Janeiro. Bibliotecário por formação, poeta por expressão, vê na sua poesia uma ferramenta de autoconhecimento e reexistência. Publicou o livro Vide Bula: Notas, Versos e Pensamentos (2010) ; Dualidade No País das Maravilhas (2020); Cordel: Epopeia de um Malungo Poeta: Cordel Autobiográfico (2021); E Palavra Rito: Frutos da Diáspora (2023). Participou de diversas antologias em destaca Cadernos Negros, 43, 44 e 45. E Se Tens Um Dom Seja, onde atua como revisor.
Contato:
E-mail: renanwangler@ymail.com
Instagram: @renanwanglerpoeta
site: https://renanwangler.wixsite.com/renanwangler