Revista Arte Brasileira Coluna do Mauro Machado Entre a sinestesia e a sistematização, Zé Ibarra se consolida como voz de sua geração
Coluna do Mauro Machado Traçando o perfil

Entre a sinestesia e a sistematização, Zé Ibarra se consolida como voz de sua geração

Zé Ibarra

PERFIL ⭐️ Em meio a exuberante flora do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, Zé Ibarra comenta com fluidez e segurança sobre sua carreira. Nunca abrindo mão de abstrações e de um trejeito característico de mexer no cabelo enquanto fala, ele passeia entre passado, presente e futuro na medida em que vai articulando seus pensamentos e traduzindo-os em palavras. Aos 25 anos de idade, Zé Ibarra vem construindo admirável trajetória na música, colecionando parcerias com figuras como Milton Nascimento, Gal Costa, Duda Beat e Ney Matogrosso.

“Eu nunca tive esse gap entre ouvir e tocar, acho. Desde moleque, o som me trazia tanto prazer que eu gostaria de dar prazer também.” diz o rapaz, explicando que sua conexão com a música não é apenas muito antiga, como passa longe de dicotomias entre ouví-la e produzi-la. Ganhou uma bateria da mãe aos 6 anos e, por consequência, teve acesso à educação musical propriamente dita, podendo então canalizar aquele gosto intuitivo por sons e sonoridades. Mais tarde, passou para aulas de piano e foi construindo, assim, relações com outros aspectos musicais que não apenas fossem percussivos tais como melodia e harmonia. Sua primeira composição deriva dessa época, quando aos 11 ou 12 anos tentou explorar, ainda que sem base e com lógica de pianista, o violão. Instintivo, Zé criou música nesse novo instrumento e, a partir daí, gosto pela construção musical. “Quando comecei a compor, eu ouvia as coisas antes de tocar e isso é diferente de hoje em dia que vou tocando e escolhendo.”, ressalta. Ibarra não conhecia os acordes que formava na época, surgidos espontaneamente por meio de uma afinada inteligência musical.

“Desde moleque, o som me trazia tanto prazer que eu gostaria de dar prazer também.”

Pouco mais tarde, foi mergulhando cada vez mais no universo dos sons conforme ia crescendo. Com Tom Veloso, amigo de escola, concebeu sua primeira obra no formato de canção, “Dônica” , que também foi a primeira dentre tantas parcerias de alto nível que marcam a carreira de Zé. A Escola Parque, aliás, foi de fortíssima importância para Zé em inúmeros fatores. “Dora, Tom, Lucas e Julia são as pessoas mais musicais que eu conheço.” afirma, ao colocar que o maior presente dado pela instituição foram esses amigos, que eventualmente se tornaram companheiros de trabalho, todos formados no mesmo caldeirão criativo situado no bairro da Gávea. A instituição de ensino, por outro lado, promoveu a criatividade e a sensibilidade mostrada por seus alunos, inclusive aqueles com inclinações artísticas fora da música.

O terreno fértil era o ideal para que a Dônica, banda homônima da primeira parceria de Zé Ibarra com Tom Veloso, surgisse entre adolescentes de uma mesma sala de aula. De som progressivo com doses moderadas de brasilidade, bastante fora da curva, a Dônica foi o ponto de profissionalização de Zé Ibarra. “No primeiro ano de banda, ensaiávamos quatro vezes por semana e seis horas por dia. Ninguém saia do estúdio e não podia, era regra.” O comprometimento dos integrantes da banda vinha muito do amor que todos tinham por som, como é possível imaginar, mas tanta disciplina e seriedade vinha também do traço sistemático de Ibarra. Seu talento natural existia desde muito novo e era aflorado, mas foi sendo guiado por esse espírito centrado e dedicado, como ele mesmo reconhece. Fazia os arranjos de todos os instrumentos em casa, no piano, mas sua posição também era de vocalista e de frontman do grupo. Sempre aos teclados e com o marcante cabelo ondulado, Zé Ibarra projetava sua imagem na Dônica como mistura entre Jim Morrison e Keith Emerson.

Excursionando com Milton Nascimento e a turnê do Clube da Esquina:

E se até aí predominava um caráter mais lúdico nos percursos do músico carioca, o convite para integrar a banda de Milton Nascimento para a turnê do Clube da Esquina foi determinante para que houvesse uma mudança de chave e o senso de trabalho ganhasse maior força. Sua presença no palco, ao lado de Milton e em contraste com ele repetia certa dinâmica que existia, na década de 70, com Lô Borges. Uma proposta de muito peso e responsabilidade, inclusive pelo que representava nesses termos mais simbólicos e metafóricos. Artisticamente falando, a necessidade de aperfeiçoar a voz era primária e inegociável. Seu lado sistemático falou mais alto e errar não era uma possibilidade, de forma que passou a ensaiar de forma exaustiva e fazer aulas de canto com Paola Pagnosi, a quem é muito grato. “Sinto que, com a voz, o céu é o infinito. Fico me perguntando onde vou estar daqui a 20 anos com ela, o que vou estar cantando.”, que passou a considerar o canto como seu maior e melhor instrumento, tocado com virtuosidade. Se espelha e cita, como influências nesse sentido, Caetano Veloso e Michael Jackson e até mesmo o rapper contemporâneo Tyler, the Creator.

Além disso, começou a tocar violão ao vivo pela primeira vez, o que foi outra grande escola e mudou sua perspectiva musical. Zé já era apaixonado pela música brasileira, mas passou a tê-la com maior proximidade e intimidade a partir dos trabalhos na turnê do Clube da Esquina. Antes, na Dônica, a aproximação com essas vertentes musicais eram mais sutis, sublimes. Ao menos no jeito que isso aparecia em suas criações musicais. Gostava, por exemplo, de ouvir bossa nova mas não de tocá-la. Acordes com intervalos de sétima maior e sexta eram evitados nos anos de sua primeira banda, já que trariam sonoridades mais escancaradamente brasileiras. “Eu fugia racionalmente disso”, confessa Ibarra, que acabou se entregando e entendendo o poder que tais sonoridades também podiam trazer para os campos de composição e interpretação. “Cada tensão que eu boto em um acorde é muito séria, delimita paisagem, linguagem e história da música.” Buscando comparações menos óbvias e mais sinestésicas, abstratas, vai mostrando o quanto foi mudando sua visão sobre música e sobre arte, sobre processo criativo e sobre suas preferências.

“Sinto que, com a voz, o céu é o infinito. Fico me perguntando onde vou estar daqui a 20 anos com ela, o que vou estar cantando.”

Bala Desejo e o desbunde coletivo:

Mais recentemente, o mergulho com a música brasileira em sua produção se deu em absoluto no Bala Desejo. Coletivo composto junto de Dora Morelenbaum, Lucas Nunes e Julia Mestre, que já vinham trabalhando juntos desde 2021 e lançaram material gravado em estúdio no início de 2022, é atualmente o principal projeto de Zé Ibarra. A sonoridade setentista, lembrando ecos de Doces Bárbaros misturados com Novos Baianos e Mutantes foram as primeiras referências apontadas por muitos. A energia do ideal de (re)carnavalizar trazida pelo desbunde dos anos 70 é marcada e, em certo sentido, aquilo que primeiro salta aos ouvidos durante a audição.Um tipo de presente, de oferenda, que se diferenciava de outros trabalhos lançados na música com temáticas pesadas de isolamento ou solidão por conta da pandemia. “Quando a gente começou a fazer, foi muito claro pra mim. Agora eu vou tentar fazer o Refavela em termos de produção, estética e referência.”, pontua Zé ao mencionar o icônico disco de Gilberto Gil, datado de 1977, para fazer a conexão entre passado e presente presente no som de seu novo trabalho. Por outro lado, é assertivo quando explora sua visão sobre o assunto, “Acho que a melhor produção musical está na composição, já vem dela.”. A composição é, para Zé Ibarra, a matéria-prima definidora de tudo. Ele vai  comentando, então, as diferenças entre conceber arranjos e produzir músicas na Dônica e no Bala Desejo, indo por caminhos abstratos e cheios de analogia. “Com a Dônica, eu fazia arranjo de base. Coisas muito combinadas entre uma sobrecamada e a camada de baixo, todo mundo se movimentando junto e não paralelamente. No Bala é outro jeito, a base caminha sobre certa paisagem e, em cima, vão outras informações.”, diferenciando as abordagens típicas do progressivo e da MPB e ilustrando-as com referências visuais.

No entanto, se tratando em termos mais amplos de dinâmicas coletivas e musicais, a Dônica trazia para Zé uma espécie de atitude centralizadora que o Bala Desejo não traz. Há “acordos em comum” no novo grupo, como o jovem se refere, e espaço para todos os quatro. Existe um equilíbrio saudável e enriquecedor que transparece em sua apresentações ao vivo e mesmo nas gravações de estúdio. Os integrantes do Bala Desejo possuem uma simbiose orgânica pulsante em diversos níveis. “São quatro e não quatro calados, são quatro leões.”, define Zé Ibarra. Nem seria exagero também dizer que os cariocas prestam homenagem para a geração que se enquadram em seu trabalho e, por isso, acabam englobando mais do que somente eles mesmos. Em “Lambe Lambe” há menção a Tim Bernardes, Rubel, Sophie Chablau e outros amigos da mesma turma, assim como canções que não originalmente foram gravadas pelo Bala Desejo são tocadas em seus shows. “É claramente uma vontade nossa de ajudar a nós e aos outros de nos entendermos como uma geração, como um corpo em movimento uno. O Bala é isso, na verdade.”. Ibarra transita não só entre passado e presente, mas pelo individual e coletivo com um ar filosófico e sábio, como quem sabe onde quer chegar e como quer chegar.

O disco que lançou Zé Ramalho

Tom Zé já dizia: todo compositor brasileiro é um complexado

Perspectivas futuras, carreira solo e reflexões:

Para sua carreira solo, para além da participação em coletivos, Zé vai entrar em estúdio ainda em 2022 para a gravação de seu primeiro álbum solo. Sem receios, inclusive, de ficar excessivamente atrelado aos seus trabalhos anteriores. “A minha verdade se revela enquanto indivíduo através de várias publicações coletivas”, ele declara. Sozinho ou acompanhado, trata-se do mesmo artista com as mesmas verdades. “O Zé Ibarra, sozinho, eu quero que seja muito cantor.”. Sua intenção vai de encontro com o formato que tem adotado em shows solo e em lives no Instagram, já há algum tempo, com muito foco na sua voz e em seu canto. O repertório deve contar com músicas de sua composição, parcerias com outros compositores e, ainda, algumas de outros artistas. Zé comenta empolgado com a perspectiva de poder lançar esse trabalho e, mais ainda, daquilo que pensa em botar em prática nos seus futuros shows. É aquele olhar minucioso que nunca deixa de passar pela sistematização, sem também perder a mágica envolvida na música, que está lá. “Eu quero fazer aqueles shows longos, sabe? Pode ser sobre uma narrativa, e quero que seja também, mas quero que seja sobre música. Quero que as pessoas possam ir no meu show e relaxar com duas horas de prazer, duas horas de som bom batendo nos ouvidos.”. O processo de criação para ele se dá, em grande medida, nessa conexão criada entre o músico e seu público. Poder tirar música de si e compartilhar com os outros acaba sendo,desse jeito, essencial. Seja nesses planos mais longevos, nas apresentações intimistas feitas em pequenas casas de show ou em transmissões ao vivo na internet. Formatos que já foram e ainda são explorados pelo carioca em sua carreira e na sua busca por se sentir completo enquanto artista.

Dos anos de adolescência até hoje, muita coisa aconteceu com Zé Ibarra. Muita experiência e maturidade vieram, da mesma forma que a música se estabeleceu de fato como ofício. O canto foi aprimorado, o senso de estética visual foi ganhando importância e um olhar diferenciado e, até no âmbito da personalidade, há mudanças consideráveis. “Cada vez eu me adoço mais, no sentido de sentir a vida e levar a vida de forma mais calma.”. Aquilo que se manteve, entretanto, foi o prazer com a música. E não qualquer tipo de prazer, mas um prazer sinestésico e absoluto, que existe inclusive enquanto Zé cria e pensa suas criações. “O que me faz escolher um acorde ou uma melodia é quando bate uma emoção, é quando eu sinto.” explica, enquanto vai comparando os movimentos melódicos e harmônicos de “Nesse Sofá”, do Bala Desejo, com o mar e seus deslocamentos. Ainda que esteja em outra fase da vida, seja profissional ou pessoal, esse brilho nos olhos quando trata de música ainda está lá e, na realidade, se torna cada vez mais denso. Seja quando compõe a sós, performa com outros ou descobre novos sons. Ao ser apresentado a uma versão de “Chega de Saudade” instrumental, arranjada por Rogério Duprat e lançada em 1968, no A Banda Tropicalista do Duprat, Zé Ibarra se delicia com os novos caminhos e possibilidades exploradas na singular versão da canção originalmente eternizada na voz de João Gilberto.

Ele ainda acredita na força da melodia e na força que ela possui como matéria-prima musical e se encanta por ela. Acredita que nela está a identidade musical, e por isso não se importa em soar parecido com os artistas que mais o influenciam, numa espécie de visão pejorativa daquilo que poderia ser chamado de “retrô-vanguardismo”. É nessa troca entre intuição e sistematicidade, abstração e centralização, que Zé Ibarra atua com a música. “O som traduz o mundo, eu vejo dessa forma.”, entende ele, que toma para si a missão de traduzir o mundo junto de seus sentimentos e sensações pelo som, pelas sonoridades. É, por fim, o lado explorador e filosófico de seu sol em sagitário se somando à praticidade e concretude de seu ascendente em virgem.

“O som traduz o mundo, eu vejo dessa forma.”

Crédito das fotos: Mauro Machado

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