Olá! Eu sou Bernardo Soares, um artista da palavra cantada, compositor de canções que atua a partir de Curitiba, no sul do Brasil. A convite da Revista Arte Brasileira, venho aqui falar um pouco sobre o meu último álbum lançado, chamado “Disco do Desassossego Deluxe”. O título e edição do texto são do editor, Matheus Luzi.
A partir de agora, conheçam esta história:
Quando eu era criança (talvez com doze ou onze anos), eu li uma obra do Pedro Bandeira chamada “A Marca de uma Lágrima”, uma história de transição infanto-juvenil que tem como base a estrutura do Cyrano de Bergerac, do Edmond Rostand. Era uma história de amor platônico de uma personagem que ficava entre o amor de um casal, ajudando esse casal com o coração apertado e no meio daquele história a personagem Isabel, me lembro bem, entrava em uma biblioteca e trombava com um livro do Fernando Pessoa e com o seu verso clássico sobre o poeta fingidor (“o poeta é um fingidor, finge tão completamente que finge ser dor a dor que deveras sente). Gostei tanto desse poema que o escrevi logo no meu fichário com caneta corretivo branca (a gente fazia isso em 1996) e fiz meus pais comprarem um livro de bolso do poeta, da edição L&pm Pocket.
Já um carioca radicado em Curitiba (fui levado pelos meus pais do Rio de Janeiro para o Paraná dos treze para os quatorze anos de idade) descobri, lá pelos dezesseis anos, a Biblioteca Pública do Paraná, um prédio antigo da década de cinquenta que abrigava um acervo maravilhoso de livros antigos no centro da cidade. Sempre que eu fugia do meu estágio eu ficava por lá, folheando livros, tropeçando em contos, ouvindo os sussurros das pessoas que tentavam conversar rapidamente no pavilhão de locação de livros. Eu amava flanar por aquele espaço, com seu chão xadrez, suas janelas modernistas, alugava livros ao bel prazer da capa ou de ter gostado da folha de rosto, decorava as seções dos autores como o labirinto das ruas do centro, me habitando e me habilitando nas expressões que aqueles seres quietos, sérios e fantásticos – os livros – iam me trazendo. Bibliotecas me despertam um certo frisson interior, é como se cada obra ali – austera e empoeirada entre as prateleiras -pudesse ser um portal dimensional para um mundo de preenchimento, presença e alegria, como se, num manusear equivocado, uma porta-secreta a qualquer momento pudesse se abrir e me levar a outros lugares impensáveis. Bibliotecas são o mistério encadernado. Ali , naquele espaço, trombei com muitos amores e paixões: Marguerite Yourcenar, Clarice Lispector, Veríssimo (pai e filho), Wilde, Proust, Cruz e Sousa, Manoel de Barros e num certo dia chuvoso e frio (como muitos em Curitiba), trombei com um livro do Fernando Pessoa que eu não conhecia, chamado Livro do Desassossego.
Abri o livro, uma capa cinza com tipografia azul e branca (exatamente como a tarde que despontava lá fora) e li: escrito por Bernardo Soares. Me assustei. Bernardo Soares era eu. Mesmo tendo gostado e fuçado anos antes um pouco do trabalho do Fernando, eu jamais tinha tido a notícia de que um de seus personagens levava o meu nome, exatamente o meu nome, e não só meu nome, meu nome e sobrenome, era um Bernardo Soares que estava ali, no livro. Era um Bernardo Soares que estava ali na frente do livro também. Era uma sensação de duplo, de reverberação e consonância, era eu mas também não era.
Levei esse livro correndo para casa, sua prosa poética foi se infiltrando nos meus dias e a angústia, a melancolia, os rompantes de lucidez atrelados à imensa energia guardada no corpo criativo do ajudante de guarda-livros Bernardo Soares se coadunaram direitinho com “mood” pré-adulto-já-adolescente daquele período. Como foi bom ler Fernando Pessoa/ Bernardo Soares aos dezesseis anos. Acho que foi ali, sentindo parte do que aquele personagem sentia, concordando e não concordando com muitos de seus argumentos sobre a vida e aquela Lisboa prateada num pós chuva, que me constatei poeta.
Mas mal sabia eu que de poeta e de louco, fui mesmo é virar letrista e compositor. Nos anos que se seguiram guardei com carinho a identificação, as palavras, o cheiro e o sentimento de ter lido esse livro naquela época e sabia (de alguma forma não lógica) que algo para além da leitura sairia daquele namoro. Eis que dezesseis anos depois, já um compositor inquieto a lançar meu segundo álbum (intitulado Coyoh), me senti chamado a retornar naquele assunto que tinha o meu nome, ou melhor, naquele” livro que eu tinha escrito na minha encarnação anterior”, ou talvez “naquele livro que eu sentia que era meu mesmo sem ser” e resolvi começar a fuçar não só o período e o formato de escrita dessa obra, mas criar um compêndio de canções-desassossego que – quase cem anos depois – também fossem escritas por um Bernardo Soares.
Algum pensamento intrusivo na minha cabeça me disse que, se eu lesse esse livro inteiro novamente, de cabo a rabo, morreria (loucura de processo criativo, cada um tem a sua). Rasguei uma página aleatória da edição que estava em minhas mãos e iniciei o processo de leitura, dessa vez de forma diferente, perscrutando o formato de escrita do livro mais do que a ordem do texto em si. O Livro do Desassossego foi escrito de forma esparsa, durante mais de vinte anos pelo Fernando. Não foi publicado com ele em vida, mas Fernando, antes de morrer, deixou escritas algumas orientações de como aquele compêndio de textos deveriam ser unificados, bem como assinados por esse personagem, Bernardo Soares.
Então eu, Bernardo Soares, resolvi escrever, cem anos após o outro Bernardo Soares , canções de forma esparsa chamadas e numeradas como “desassossegos”, no intuito de passar boa parte da minha vida (talvez os próximos vinte anos), publicando essas músicas. Mas como pensar canção a partir do Fernando Pessoa? Mais do que o texto em si, no sentido estrito, me interessei por algumas (não todas) as ideias contidas nos excertos, pelo formato oracular de organização textual, pela questão randômica sugerida na febre da escrita desse maravilhoso autor (O desassossego real contido ali naquela obra sempre foi esse, Bernardo Soares foi o semi-heterônimo mais parecido com o próprio Fernando). Peguei o violão de meu pai (um daqueles Di Giorgios da década de 1960 de madeira envelhecida) e baixei um tom e meio todas as cordas, mantendo a mesma relação de afinação (queria criar em uma região de voz que fosse mais grave e mais confortável do que aquela que eu geralmente usava). Selecionei alguns bons trechos do livro e, a partir de alguma uma grande sacada do Bernardo Soares que me brilhava aos olhos, ergui todo um letramento metafórico sobre isso, mantendo a verve angustiada mas atualizando-a muitas vezes para assuntos que (tal qual Fernando tratou na sua época) fossem contemporâneos, efêmeros e atemporais, como Fernando Pessoa sempre foi.
Quando, por exemplo, no Livro do Desassossego, Bernardo Soares escreveu “nunca amamos alguém, amamos apenas a ideia que fazemos de alguém, é a um conceito nosso, em suma, é a nós mesmos, que amamos”, achei por bem criar um música que falasse sobre as possibilidades (e também perigos) do “amor livre”. Ou quando eu li que “velar o céu é um dos grandes perigos do meu destino” criei uma canção de versos simples que fala de um coração alado que tem medo de aterrar. As conexões inspiracionais não são diretas, muito pelo contrário, são contextuais às abordagens do texto. Afinal o que um Bernardo Soares escreveu, um outro Bernardo Soares gostaria apenas de expandir, não de copiar.
E eis que o Disco do Desassossego Deluxe vem disso: comecei publicando os primeiros oito desassossegos em 2019, agora em 2024 trago os oitos desassossegos lançados com mais quatro desassossegos inéditos e mais doze comentários (um para cada faixa), contando um pouco sobre o que eu senti, qual trecho de texto me inspirou, ou quais assuntos me chamaram atenção nos textos escritos há tanto tempo e que se tornaram música, palavra cantada, conexão com o tímpano. É um álbum de música mas também é um álbum de conversa. É poesia e é prosa. Elegi o violão de nylon e a rabeca como instrumentos-chave dessa conexão ibérica entre Portugal e Brasil, e mais do que isso, pensei o mar, a água em ondas, como elemento que traduz essa conexão, como elemento que – exatamente por causa de seu desassossego – gera vida no planeta. O “Disco do Desassossego Deluxe” é isso: uma viagem musical de um Bernardo Soares brasileiro sobre a obra de um Bernardo Soares português, quem tem no mar sua imagem conectiva de trabalho e ciclo e na palavra (cantada e falada) sua forma de entoar e encantar o mundo. Ficarei honradíssimo com a tua escuta!!
CAPA DA PUBLICAÇÃO – Bernardo Bravo por Nina Bufferli Barbosa