Zé Ramalho sempre foi esse mistério todo. Este misticismo começou a fazer sucesso no primeiro disco solo do compositor nordestino, “Zé Ramalho”, lançado em 1978 pela gravadora CBS.
Em 1975, pela gravadora Rozenblit, Zé Ramalho lançava o álbum de músicas progressivas, “Paêbirú”, juntamente com Lula Côrtes. Um ano antes, o músico tocou na trilha sonora do filme “Nordeste: Cordel, Repente e Canção”, de Tânia Quaresma, na faixa “Martelo Alagoano”. Mas a grande sacada do compositor foi o lançamento de seu primeiro trabalho solo, álbum que leva o seu próprio nome. Em “Zé Ramalho”, o cantor que ficou conhecido como “Bob Dylan do Sertão”, entrou para as paradas de sucesso do rádio, principalmente com a icônica composição “Avôhai”, que acabou sendo a primeira a estourar nos programas radiofônicos. Em seguida, veio “Vila do Sossego”. “Chão de giz”, imortalizada em suas apresentações, seria mais tarde o cartão postal da discografia do cantor.
Tanto “Avôhai” quanto “Vila do sossego”, as duas “grandes estrelas” em primeira via do disco, têm suas histórias peculiares. A primeira foi criada em homenagem ao seu avô, que fizera o papel paterno na vida do músico devido à morte precoce do pai de Zé por afogamento em um açude localizado no sertão da Paraíba. Porém, segundo o que afirma o próprio compositor no livro biográfico “Zé Ramalho – O poeta dos abismos”, “Avôhai” vai muito além da homenagem. Ele explica que a letra e a melodia da canção surgiram em meio a uma “viagem louca” marcada pela embriaguez devido ao uso de cogumelos alucinógenos, com cores vivas e percepções aguçadas. Mas foi somente após alguns dias, quando as lembranças passaram a bater, que a letra, enfim, tomou forma, juntamente com a melodia. Fazendo-se uma breve pesquisa, nota-se que o que chama a atenção em “Avôhai” é a magia da música, que possui várias temáticas e proporciona diversos tipos de inspirações. A letra parte da origem da humanidade e chega aos aspectos pessoais vivenciados pelo compositor na infância e na adolescência, como no verso “O brejo cruza a poeira”, que faz referência à partida do menino Zé Ramalho de Brejo da Cruz, onde nasceu, para Campina Grande, local onde muita coisa boa lhe aconteceria.
Já “Vila do Sossego” foi composta por Zé pensando em uma casa onde viveu em João Pessoa, cujos frequentadores eram típicos representantes da mentalidade hippie partilhada pelo músico. Tratava-se de reuniões de intelectuais, artistas e cantadores, ou seja, de pessoas contrárias aos paradigmas sociais predominantes, e pertencentes a várias culturas. Na casa, Zé compôs muitas músicas, ao se aproveitar do ambiente amistoso e inspirador. “Chão de Giz” é outra canção que foge completamente aos clichês. A obra foi inspirada em um relacionamento que Zé Ramalho teve com uma mulher mais velha, e casada com um homem muito rico de João Pessoa. O verso “Fotografias recortadas e folhas de jornais”, por exemplo, nasceu em uma ocasião na qual as fotos dessa mulher saíram em um periódico local, já que o marido era influente na região e conseguira esse espaço sem grandes esforços.
O primeiro disco solo de Zé Ramalho é também marcado pela parceria do compositor com grandes nomes da música, como Alceu Valença em “A Noite Preta”, e Geraldo Azevedo em “Bicho de Sete Cabeças”. No meio do processo de gravação, que se iniciou em 1977, Zé conheceu, nos corredores da gravadora, Dominguinhos, Paulo Moura, Sérgio Dias Batista e Carlos Alberto, que acabaram sendo encaixados de alguma forma nas sete faixas autorais e até então inéditas que compunham o álbum. À época, o Brasil estava saindo dos “anos de chumbo” do regime militar, com a extinção do AI-5 pelo governo de Ernesto Geisel. Nesse contexto, as músicas do disco “Zé Ramalho” não caíram na censura de maneira alguma, sobretudo pelo fato de que suas letras e poesias iam além de uma compreensão a olho nu, requerendo uma análise mais aprofundada do contexto em que se encontravam.
Com o disco, Zé Ramalho causou forte impacto na mídia, dividindo espaço com acontecimentos importantes, como a Copa do Mundo (vencida pela Argentina), e o falecimento do cantor Orlando Silva. A obra também ficou bem conceituada entre os mais respeitados críticos do meio musical e se tornou sucesso de vendas, além de levar Zé Ramalho a ganhar o prêmio de “Melhor Cantor Revelação” segundo a “Associação Brasileira de Produtores de Discos”. Aos interessados, os mistérios de Zé Ramalho continuam disponíveis, em reedição de 2018, com o nome de “Avôhai 40 Anos – Remake Pop Rock”, disco que chegou ao público com produção de Marcelo Fróes, tendo vários cantores da nova MPB interpretando os maiores clássicos do primeiro trabalho solo do compositor nordestino. Afinal, Zé Ramalho continua sendo assunto garantido quando a conversa é sobre os melhores e mais lembrados nomes da música brasileira.
DEPOIS DE SUA FENOMENAL ESTREIA SOLO, Zé Ramalho lançou outros inúmeros discos notáveis. Em “Zé Ramalho 2”, o nordestino aparece com canções importantes em seu repertório, como “Admirável Gado novo” e “Garoto de Aluguel”. O álbum também se destaca pela capa, na qual o músico aparece sendo apreciado pelo místico Zé do Caixão. Em 1996, com “O Grande Encontro”, integrou o quarteto que se consolidou como um dos maiores grupos da MPB. Formado por Zé Ramalho, Elba Ramalho, Alceu Valença e Geraldo Azevedo, o quarteto fidelizou as apresentações de seu show personalizado e gravou outros discos. Em 2016, porém, Zé Ramalho deixa o grupo desejando boa sorte e sucesso aos que permaneceram.
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AS RELEITURAS
Zé Ramalho é um especialista em fazer releituras de clássicos de outros artistas. Em 2001, o artista presenteou os fãs de Raul Seixas com um álbum em que constam intepretações de hits antológicos do “Maluco Beleza”, como “Metamorfose Ambulante” e “Ouro de Tolo”, modificando as estruturas das músicas de modo significativo. Sete anos depois, Zé Ramalho gravou um tributo a Bob Dylan, uma de suas referências desde muito cedo, fazendo o mesmo a Luiz Gonzaga, em 2009, e, enfim, aos Beatles, em 2011. Neste último, o compositor impressiona com as releituras que aproximam o quarteto britânico da música nordestina, tanto no sotaque quanto no ritmo.
CURIOSIDADES
– “Chão de giz” é a primeira música brasileira a abordar o tema do preservativo popularmente conhecido como “camisinha”, com o verso “Queria usar, quem sabe / Uma camisa de força / Ou de vênus”.
– Com o sucesso já garantido desde época do tropicalismo, Sérgio Dias, membro do grupo Os Mutantes, se destacou em “Zé Ramalho” como solista alucinado de guitarra na faixa “A Dança das Borboletas”.
– Em sentido contrário ao do restante das faixas, Zé Ramalho e Geraldo Azevedo dão um “show de loucura” ao longo dos quase dois minutos e meio da música instrumental “Bicho de 7 cabeças”, que, futuramente, se tornaria uma canção com o brilho vocal de Elba Ramalho, prima de Zé Ramalho.
Reportagem de Matheus Luzi, escrita e editada em 2018.