Entrevistamos Ivan Vilela, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, que organizou o dossiê Música Popular Brasileira, que reúne 12 tópicos interessantes sobre as canções nacionais e suas representações. O dossiê faz parte da edição de número 111 da Revista USP, publicação da Superintendência de Comunicação Social (SCS) da USP. Nesta entrevista exclusiva, Ivan descreveu cada um dos tópicos presentes no dossiê. Veja:
Como surgiu a ideia do dossiê e qual foi o motivo e objetivo de organizar esse material?
Desde que organizei a Revista USP n.87,em 2010, que tratava do tema música brasileira não canônica, surgiu uma amizade que se renovava em conversas e pontos de vista entre o Francisco Costa, diretor da Revista USP e eu. Neste n. 87 foquei em trazer à tona artigos que tratassem do lado B da música popular brasileira, posto que muito se falou de alguns eventos que foram inicialmente tratados como mais importantes e nada se tratou de eventos que foram igualmente importantes, lembrando que o que fez a música popular, talvez a mais expressiva música popular do planeta, não foi só a sua alta qualidade, mas também a sua diversidade.
Para este número presente, o 111, cuidei de colocar evidência em uma situação um tanto idiossincrática: a vasta produção sobre música popular na USP em vários departamentos, exceto no da música e o preconceito ainda presente acerca do estudo da música popular dentro da Universidade, no Brasil. Haja visto que quase não temos, no Brasil, faculdades que ensinem a música brasileira.
Não podemos nos esquecer de que somos uma cultura de soma e a música clássica europeia nos é preciosa e muito orientou a formação da nossa música, sobretudo na gênese desta, mas ela não deve ser a única música a ser ensinada nas escolas, sobretudo pelo fato da música ser sempre cronista de seu tempo e seu povo. Ora, desprezarmos a atualidade e importância do discurso do RAP em nossos tempos dentro do ensino caracteriza-se, ao meu ver, como um descuido. Além disso, reforça-se, com a exclusividade do ensino da música europeia, uma falsa ideia de que há uma grande música e outras pequenas músicas. A pergunta que faço é: sob que parâmetro se define e qualifica-se uma música como mais sofisticada que a outra? Partindo do princípio de que o som tem quatro parâmetros básicos que o orientam, quais sejam, a intensidade (dinâmicas), o timbre, a altura (tessitura) e a duração (ritmos), fica complicado tratarmos uma música como mais sofisticada que outra, pois para se cometer este equívoco de distorção é necessário eleger um ou dois destes parâmetros como superiores aos demais. Os pigmeus da África Central não tem escrita e no entanto desconheço alguma música que seja mais complexa em sua construção.
Além de mostrar a vasta produção existente na USP sobre a música popular, objetivei chamar a atenção das entidades gestoras do ensino na universidade sobre este permanente equívoco de não se contemplar o ensino da MPB nos cursos, sobretudo de música.
Você pode comentar ou resumir cada um desses artigos presentes no dossiê?
– A arte de compor canções
Luiz Tatit trata de questões históricas e de criação acerca da composição de música popular ao longo dos tempos. Dono de uma leitura particular sobre a música popular, apoiada numa vertente da semiótica, Tatit sempre trouxe uma colaboração imensa na leitura e entendimento da MPB.
– O tropicalismo e a crítica da canção
O nome de Celso Favaretto é uma referência a todos os estudos surgidos sobre a Tropicália. Neste artigo ele continua discorrendo sobre a imensa contribuição trazida por este movimento musical à cultura brasileira.
– Djavan ou “De la musique avant toute chose”
Ivan Siqueira traz um olhar fora das principais referências de estudos sobre a MPB ao tratar do processo composicional de um particular compositor da MPB que é o Djavan. Muito se fala de alguns artistas da MPB dos anos 1960 e pouco se fala, na academia, de uma safra surgida nos anos 1970, onde podemos lembrar de João Bosco, Ivan Lins, Gonzaguinha, Alceu Valença, Elomar, Djavan dentre muitos.
Voltamos aqui à questão do cânone, pois, se de um lado ele valoriza e aprofunda o entendimento de um aspecto, ele inibe a possível diversidade de estudo para outras direções.
– Canonizações e esquecimentos na música popular brasileira.
Neste artigo eu trato da questão que há muito me ocupa no estudo da MPB: a do julgamento de valor. Como achar que um movimento ou um artista foi o único ou um dos únicos importantes em seu tempo sem percebermos que o Brasil é um país multicultural? Um país de muitas realidades regionais igualmente importantes. Por que tratamos uns artistas como artistas da MPB e outros como da música regional? Esta perspectiva, ao meu ver, já diminui o olhar e o interesse da pesquisa para alguns destes artistas ou acontecimentos musicais.
– O Ijexá no Brasil: rítmica dos deuses nos terreiros, nas ruas e palcos da música popular
Alberto Ikeda, reconhecido etnomusicólogo, traz elementos da cultura do candomblé e a maneira como ele se incorpora na MPB transformando-se em um gênero. Como diz o próprio autor: “O enfoque se dá na perspectiva histórica e etnográfica, trazendo algumas reflexões sobre a dinâmica das transculturações cultural-musicais que envolvem as comunidades de afro-descendentes na sociedade brasileira, apontando algumas possibilidades de interpretação do fenômeno.“
– Gravando! A renovação tecnológica e a consolidação do papel do produtor na música popular do Brasil
Eduardo Vicente há muito vem estudando os processos de gravação no Brasil e sua relação com os artistas da MPB. Segundo Eduardo, “a intenção desse texto é oferecer uma reflexão sobre a produção musical no Brasil a partir dos depoimentos de alguns profissionais de destaque dessa área. Busca-se discutir não apenas o papel da crescente divisão de trabalho e da importância da inovação tecnológica da indústria na valorização dessa profissão, como também o leque de abordagens que esse profissional pode assumir dentro do processo de produção de um fonograma.”
– Canção popular, música e poesia: períodos, categorias e níveis de articulação composicional
Sérgio Molina, músico e criador do curso de pós graduação em Canção Popular Urbana, na faculdade Santa Marcelina, em São Paulo, teve sua tese de doutorado eleita como a melhor produção acadêmica feita no ano de 2015 na ECA-USP. Sérgio trata do processo composicional da canção, levando-se em conta, tanto os enlaces entre melodia e letra quanto outras operações específicas do artesanato musical que se adensaram no pós-década de 1960.”
– O arranjo como estrutura e tecido do discurso musical.
O maestro e arranjador Gil Jardim traz relevância a um aspecto pouco estudado na MPB, o da importância do arranjo como um constituinte da canção.
– Nota sobre o disco Encarnado, de Juçara Marçal (2014)
Walter Garcia, professor do IEB, volta seu olhar à atualidade analisando o último disco da cantora Jussara Marçal através de uma profunda análise musical e literária.
– A etnografia musical como meio de desenvolvimento artístico: um relato
Chico Saraiva desenvolveu seu mestrado sendo orientado por Gil Jardim e coorientado pela professor Rose Satiko Hikiji, da antropologia. Neste artigo trata dos processos composicionais e da maneira como o violão interfere na criação da canção e de como a criação da canção interfere na maneira de se tocar o violão. Fez este trabalho a partir de entrevistas com Sergio Assad, João Bosco, Marco Pereira, Luiz Tatit, Paulo César Pinheiro e Paulo bellinati.
– Criar um mundo do nada
José Geraldo Vince de Moraes analisa o surgimento da crítica musical no Brasil e de como ela se transformou na base dos posteriores estudos acadêmicos. Segundo o autor: “Esse artigo tem como objetivo examinar de maneira crítica aspectos de seu trabalho historiográfico, as interpretações e suas contribuições na invenção e construção de uma narrativa historiográfica sobre o tema.”