18 de maio de 2025

Entrevista póstuma de Noel Rosa “Adeus é pra quem deixa a vida”

 

noel-rosa-inside-1024x900

 

Perguntas diretas, e respostas mais diretas ainda. Dessa maneira, podemos caracterizar a entrevista póstuma dada de Noel Rosa para Sérgio Cabral (Jornal O Pasquim) em 1973, na qual Cabral usou trechos de obras de Noel para criar a entrevista.

“Trinta e seis anos depois de sua morte (morreu dia 4 de maio de 1937), procurei Noel Rosa para uma entrevista.

– Eu não tenho nada a dizer. O que você quiser saber está na minha obra – disse ele modestamente.

O resultado foi esta entrevista. Se não estiver boa, não ponham a culpa exclusivamente no repórter. Afinal, o entrevistado não dá entrevista há, pelo menos, 36 anos”. (Sérgio Cabral).

 

O PASQUIM – Você um cara cheio de problemas de saúde, não saía dos bares, bebendo a noite inteira, batendo papo, etc.

NOEL ROSA – Saber sofrer é uma arte. E pondo a modéstia de parte, eu sei sofrer.

O PASQUIM – Então você sofreu pra burro.

NOEL ROSA – Mesmo assim não cansei de viver.

O PASQUIM – Mas as mulheres de vez em quando, te faziam sofrer mais ainda.

NOEL ROSA – Quem sofreu mais do que eu não nasceu.

O PASQUIM – Uma das suas mulheres foi até visitá-lo, quando você esteve doente. Mas você estava fora. Por que ela foi lá?

NOEL ROSA – Porque pretendia somente saber qual era o dia que eu deixaria de viver.

O PASQUIM – Você sofreu várias decepções mas continuou amando.

NOEL ROSA – Nunca se deve jurar não mais amar a ninguém.

O PASQUIM – Quer dizer que você não tem nada contra o amor.

NOEL ROSA – Quem fala mal do amor não sabe a vida gozar.

O PASQUIM – Mas você, de vez em quando, fala mal da mulher.

NOEL ROSA – A mulher mente brincando e, às vezes, brinca mentindo.

O PASQUIM – Explica isso melhor.

NOEL ROSA – Quando ri está chorando e quando chora está sorrindo.

O PASQUIM – Você sabe se a Betty Friedman o conhecesse teria uma imensa bronca de você que é contra a mulher trabalhando.

NOEL ROSA – Todo cargo masculino, seja grande ou pequenino, hoje em dia é pra mulher.

O PASQUIM – Mas o que é que atrapalha isso, Noel?

NOEL ROSA – E por causa dos palhaços, ela esquece que tem braços. Nem cozinhar ela quer.

O PASQUIM – Mas os direitos são iguais.

NOEL ROSA – Os direitos são iguais, mas até nos tribunais a mulher faz o que quer.

O PASQUIM – Então não são tão iguais assim.

NOEL ROSA – Pois o homem já nasceu dando a costela à mulher.

O PASQUIM – Essa história não é bem assim, não. É preciso discutir.

NOEL ROSA – Mas não quero discussão.

O PASQUIM – Da discussão sai a razão.

NOEL ROSA – Mas às vezes sai pancada.

O PASQUIM – Você gosta mesmo é de samba, não é?

NOEL ROSA – O mundo é um samba em que eu danço sem nunca sair do meu trilho.

O PASQUIM – Você acha mesmo o samba um troço importante?

NOEL ROSA – Exprime dois terços do Rio de Janeiro.

O PASQUIM – Tenho vários amigos que não gostam de samba, querem voar mais alto.

NOEL ROSA – Mas quem voa em grande altura leva sempre grande queda.

O PASQUIM – Não fale assim, Noel, os caras podem se chatear.

NOEL ROSA – O que eu falo é bem pensado. Não receio escaramuça. E que aceite a carapuça quem se sente melindrado.

O PASQUIM – Assim como você está falando, o que é que quer que eles pensem de você?

NOEL ROSA – Que entre nós o páreo é duro.

O PASQUIM – Mas vão acabar seus inimigos.

NOEL ROSA – Meus inimigos, que hoje falam mal de mim, vão dizer que nunca viram uma pessoa tão boa assim.

O PASQUIM – Pelo que vejo, não se pode falar mal do samba perto de você.

NOEL ROSA – O samba é a corda e eu sou a caçamba.

O PASQUIM – Você não tem medo de ninguém?

NOEL ROSA – Sou independente como se vê.

O PASQUIM – Independente? Está rico?

NOEL ROSA – Não consigo ter nem pra gastar.

O PASQUIM – Ou seja: está durão.

NOEL ROSA – Já estou coberto de farrapo, eu vou acabar ficando nu. Meu paletó virou estopa e eu nem sei mais com que roupa que eu vou pro samba que você me convidou.

O PASQUIM – Você não vai porque está com medo dos malandros do samba.

NOEL ROSA – Não tenho medo de bamba. Na roda do samba, eu sou bacharel.

O PASQUIM – Como é que é esse negócio de bacharel?

NOEL ROSA – Quando me formei no samba recebi uma medalha.

O PASQUIM – Você vive em tudo que é samba, não é?

NOEL ROSA – A polícia em todo canto proibiu a batucada. Eu vou pra Vila onde a polícia é camarada.

O PASQUIM – O samba em Vila Isabel é de noite ou de dia?

NOEL ROSA – O sol da Vila é triste. Samba não assiste porque a gente implora: “Sol, pelo amor de Deus, não venha agora que as morenas vão logo embora”.

O PASQUIM – Mas tem mais samba em outros lugares, Noel.

NOEL ROSA – Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira, Oswaldo Cruz e Matriz.

O PASQUIM – E a Vila, como é que fica nisso?

NOEL ROSA – A Vila não quer abafar ninguém. Só quer mostrar que faz samba também.

O PASQUIM – Conforme você disse, o samba exprime dois terços do Rio de Janeiro.

NOEL ROSA – Mas tenho que dizer: modéstia à parte, meus senhores, eu sou da Vila.

O PASQUIM – Assim não pode, Noel. Com esta banca é melhor a gente acabar a entrevista.

NOEL ROSA – Ofereço meu auxílio. Passe bem, vá pela sombra.

O PASQUIM – Está me mandando embora, Noel?

NOEL ROSA – Não mandei você embora porque sou benevolente.

O PASQUIM – Sabe que se você dissesse isso para certos jornalistas, eles entenderiam como um desafio para briga?

NOEL ROSA – De lutas não entendo abacate.

O PASQUIM – Ué, eu soube que você já lutou profissionalmente.

NOEL ROSA – Cheguei até ser contratado para subir em um tablado para vencer um campeão.

O PASQUIM – E daí, venceu?

NOEL ROSA – Mas a empresa, pra evitar assassinato, rasgou logo o meu contrato, quando me viu sem roupão.

O PASQUIM – E como é que você se vira com esses valentões?

NOEL ROSA – No século do progresso, o revólver teve ingresso para acabar com a valentia.

O PASQUIM – Você sabe que o Josué Montello…

NOEL ROSA – Escreve sal com c cedilha.

O PASQUIM – Pois é. Ele agora é da Academia Brasileira de Letras, junto com a Pedro Calmon.

NOEL ROSA – Desta vez, juntou-se a fome com a vontade de comer.

O PASQUIM – Mas eles tem prestígio por aí, numa certa roda.

NOEL ROSA – Vassouras nos salões da sociedade.

O PASQUIM – Você não freqüenta essa roda, não é?

NOEL ROSA – Você pode crer que a palmeira do Mangue não vive em Copacabana.]

O PASQUIM – Vamos falar mal das pessoas. E o Roberto Campos, hem?

NOEL ROSA – Que é também brasileiro. E em três lotes vendeu o Brasil inteiro.

O PASQUIM – Sabe que andaram pixando você sob o pretexto de que você é bom de letra mas não de música?

NOEL ROSA – Sendo as notas sete apenas, mais eu não posso inventar.

O PASQUIM – Bem, Noel, vamos acabar a entrevista. Adeus.

NOEL ROSA – Adeus é pra quem deixa a vida. Três palavras vou gritar por despedida: até amanhã, até já, até logo.

************

 

 

Newsletter

Mercedes Sosa em 241 palavras

Mercedes Sosa é uma cantora argentina nascida em 1935, na província de Tucumán. É considerada como “a voz da américa.

LEIA MAIS

PUPILA CULT – O lado desconhecido da “Terra do Rei do Gado”

Assim como qualquer outro lugar, histórias e curiosidades são deixadas para trás e acabam caindo no esquecimento ou até sendo.

LEIA MAIS

Dos livros às telas de cinema

Não é de hoje que muitas histórias de livros despertam desejos cinematográficos, algumas dessas histórias ao pararem nos cinemas até.

LEIA MAIS

Editoras para publicar seu livro de ficção científica e fantasia

Para aqueles que amam a fantasia e a ficção científica, sejam leitores ou escritores, trago aqui três editoras brasileiras que.

LEIA MAIS

Produzido por alunos do ensino público, Jornal PUPILA CULT está disponível em plataforma digital

Jornal PUPILA CULT é uma realização da OFIJOR – A Oficina de Experiência Prática de Jornalismo (OFIJOR) é um projeto social,.

LEIA MAIS

As “Dancinhas de Tik Tok” são inimigas da dança profissional?

Os avanços tecnológicos e suas devidas popularizações presenciadas desde o final dos anos 1990 e início dos anos 2000 se.

LEIA MAIS

ENTREVISTA – Literatura de Renan Wangler reforça ancestralidade e luta da população negra

A população negra precisa estar conectada com a literatura, cultura e arte, dessa forma podemos estar conectados com a nossa.

LEIA MAIS

Podcast Investiga: A arte como resistência política e social (com Gilmar Ribeiro)

Se a arte é censurada e incomoda poderosos do capital, juízes, políticos de todas as naturezas, chefões do crime organizado,.

LEIA MAIS

Crítica: Rui de Oliveira pelos Jardins Bodoli – de Mauricio Duarte

 Crítica: Rui de Oliveira pelos Jardins Boboli – de Mauricio Duarte   O que acontece quando um mestre da arte.

LEIA MAIS

Podcast Investiga: O funcionamento de um cineclube (com Cadu Modesto e Tiago Santos Souza)

Neste episódio, Matheus Luzi investiga os cineclube, casas de cinema independentes cujo o viés comercial é, na prática e teoria,.

LEIA MAIS