5 de novembro de 2024
Música

Entrevista póstuma de Noel Rosa “Adeus é pra quem deixa a vida”

 

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Perguntas diretas, e respostas mais diretas ainda. Dessa maneira, podemos caracterizar a entrevista póstuma dada de Noel Rosa para Sérgio Cabral (Jornal O Pasquim) em 1973, na qual Cabral usou trechos de obras de Noel para criar a entrevista.

“Trinta e seis anos depois de sua morte (morreu dia 4 de maio de 1937), procurei Noel Rosa para uma entrevista.

– Eu não tenho nada a dizer. O que você quiser saber está na minha obra – disse ele modestamente.

O resultado foi esta entrevista. Se não estiver boa, não ponham a culpa exclusivamente no repórter. Afinal, o entrevistado não dá entrevista há, pelo menos, 36 anos”. (Sérgio Cabral).

 

O PASQUIM – Você um cara cheio de problemas de saúde, não saía dos bares, bebendo a noite inteira, batendo papo, etc.

NOEL ROSA – Saber sofrer é uma arte. E pondo a modéstia de parte, eu sei sofrer.

O PASQUIM – Então você sofreu pra burro.

NOEL ROSA – Mesmo assim não cansei de viver.

O PASQUIM – Mas as mulheres de vez em quando, te faziam sofrer mais ainda.

NOEL ROSA – Quem sofreu mais do que eu não nasceu.

O PASQUIM – Uma das suas mulheres foi até visitá-lo, quando você esteve doente. Mas você estava fora. Por que ela foi lá?

NOEL ROSA – Porque pretendia somente saber qual era o dia que eu deixaria de viver.

O PASQUIM – Você sofreu várias decepções mas continuou amando.

NOEL ROSA – Nunca se deve jurar não mais amar a ninguém.

O PASQUIM – Quer dizer que você não tem nada contra o amor.

NOEL ROSA – Quem fala mal do amor não sabe a vida gozar.

O PASQUIM – Mas você, de vez em quando, fala mal da mulher.

NOEL ROSA – A mulher mente brincando e, às vezes, brinca mentindo.

O PASQUIM – Explica isso melhor.

NOEL ROSA – Quando ri está chorando e quando chora está sorrindo.

O PASQUIM – Você sabe se a Betty Friedman o conhecesse teria uma imensa bronca de você que é contra a mulher trabalhando.

NOEL ROSA – Todo cargo masculino, seja grande ou pequenino, hoje em dia é pra mulher.

O PASQUIM – Mas o que é que atrapalha isso, Noel?

NOEL ROSA – E por causa dos palhaços, ela esquece que tem braços. Nem cozinhar ela quer.

O PASQUIM – Mas os direitos são iguais.

NOEL ROSA – Os direitos são iguais, mas até nos tribunais a mulher faz o que quer.

O PASQUIM – Então não são tão iguais assim.

NOEL ROSA – Pois o homem já nasceu dando a costela à mulher.

O PASQUIM – Essa história não é bem assim, não. É preciso discutir.

NOEL ROSA – Mas não quero discussão.

O PASQUIM – Da discussão sai a razão.

NOEL ROSA – Mas às vezes sai pancada.

O PASQUIM – Você gosta mesmo é de samba, não é?

NOEL ROSA – O mundo é um samba em que eu danço sem nunca sair do meu trilho.

O PASQUIM – Você acha mesmo o samba um troço importante?

NOEL ROSA – Exprime dois terços do Rio de Janeiro.

O PASQUIM – Tenho vários amigos que não gostam de samba, querem voar mais alto.

NOEL ROSA – Mas quem voa em grande altura leva sempre grande queda.

O PASQUIM – Não fale assim, Noel, os caras podem se chatear.

NOEL ROSA – O que eu falo é bem pensado. Não receio escaramuça. E que aceite a carapuça quem se sente melindrado.

O PASQUIM – Assim como você está falando, o que é que quer que eles pensem de você?

NOEL ROSA – Que entre nós o páreo é duro.

O PASQUIM – Mas vão acabar seus inimigos.

NOEL ROSA – Meus inimigos, que hoje falam mal de mim, vão dizer que nunca viram uma pessoa tão boa assim.

O PASQUIM – Pelo que vejo, não se pode falar mal do samba perto de você.

NOEL ROSA – O samba é a corda e eu sou a caçamba.

O PASQUIM – Você não tem medo de ninguém?

NOEL ROSA – Sou independente como se vê.

O PASQUIM – Independente? Está rico?

NOEL ROSA – Não consigo ter nem pra gastar.

O PASQUIM – Ou seja: está durão.

NOEL ROSA – Já estou coberto de farrapo, eu vou acabar ficando nu. Meu paletó virou estopa e eu nem sei mais com que roupa que eu vou pro samba que você me convidou.

O PASQUIM – Você não vai porque está com medo dos malandros do samba.

NOEL ROSA – Não tenho medo de bamba. Na roda do samba, eu sou bacharel.

O PASQUIM – Como é que é esse negócio de bacharel?

NOEL ROSA – Quando me formei no samba recebi uma medalha.

O PASQUIM – Você vive em tudo que é samba, não é?

NOEL ROSA – A polícia em todo canto proibiu a batucada. Eu vou pra Vila onde a polícia é camarada.

O PASQUIM – O samba em Vila Isabel é de noite ou de dia?

NOEL ROSA – O sol da Vila é triste. Samba não assiste porque a gente implora: “Sol, pelo amor de Deus, não venha agora que as morenas vão logo embora”.

O PASQUIM – Mas tem mais samba em outros lugares, Noel.

NOEL ROSA – Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira, Oswaldo Cruz e Matriz.

O PASQUIM – E a Vila, como é que fica nisso?

NOEL ROSA – A Vila não quer abafar ninguém. Só quer mostrar que faz samba também.

O PASQUIM – Conforme você disse, o samba exprime dois terços do Rio de Janeiro.

NOEL ROSA – Mas tenho que dizer: modéstia à parte, meus senhores, eu sou da Vila.

O PASQUIM – Assim não pode, Noel. Com esta banca é melhor a gente acabar a entrevista.

NOEL ROSA – Ofereço meu auxílio. Passe bem, vá pela sombra.

O PASQUIM – Está me mandando embora, Noel?

NOEL ROSA – Não mandei você embora porque sou benevolente.

O PASQUIM – Sabe que se você dissesse isso para certos jornalistas, eles entenderiam como um desafio para briga?

NOEL ROSA – De lutas não entendo abacate.

O PASQUIM – Ué, eu soube que você já lutou profissionalmente.

NOEL ROSA – Cheguei até ser contratado para subir em um tablado para vencer um campeão.

O PASQUIM – E daí, venceu?

NOEL ROSA – Mas a empresa, pra evitar assassinato, rasgou logo o meu contrato, quando me viu sem roupão.

O PASQUIM – E como é que você se vira com esses valentões?

NOEL ROSA – No século do progresso, o revólver teve ingresso para acabar com a valentia.

O PASQUIM – Você sabe que o Josué Montello…

NOEL ROSA – Escreve sal com c cedilha.

O PASQUIM – Pois é. Ele agora é da Academia Brasileira de Letras, junto com a Pedro Calmon.

NOEL ROSA – Desta vez, juntou-se a fome com a vontade de comer.

O PASQUIM – Mas eles tem prestígio por aí, numa certa roda.

NOEL ROSA – Vassouras nos salões da sociedade.

O PASQUIM – Você não freqüenta essa roda, não é?

NOEL ROSA – Você pode crer que a palmeira do Mangue não vive em Copacabana.]

O PASQUIM – Vamos falar mal das pessoas. E o Roberto Campos, hem?

NOEL ROSA – Que é também brasileiro. E em três lotes vendeu o Brasil inteiro.

O PASQUIM – Sabe que andaram pixando você sob o pretexto de que você é bom de letra mas não de música?

NOEL ROSA – Sendo as notas sete apenas, mais eu não posso inventar.

O PASQUIM – Bem, Noel, vamos acabar a entrevista. Adeus.

NOEL ROSA – Adeus é pra quem deixa a vida. Três palavras vou gritar por despedida: até amanhã, até já, até logo.

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administrator
Fundador e editor da Arte Brasileira. Jornalista por formação e amor. Apaixonado pelo Brasil e por seus grandes artistas.