O mineiro Gabriel Gabrera é de afinidade indiscutível com o blues, gênero musical que conheceu muito novo, e nele permanece até o momento. Seus três álbuns são autorais e tem identidade que extrapola o entendimento blues, agregando o rock, a música folk e seus subgêneros.
Despretensioso em relação a definições sobre sua sonoridade e letras, Julio Gabriel Vieira (nome de batismo) deve a sua pluralidade aos projetos musicais aos quais integrou: duas bandas próprias e vários trabalhos freelancers. Sua poesia, “encabeçada” (digamos assim) por seu companheiro criativo Vinícius Guimarães, é humanística, existencial e social.
Som e palavras se cruzam, o que pode ser compreendido no que Gabrera já lançou.
- “Humano” é a sua estreia oficial em carreira solo, e lançado em 2017. As 13 canções, escritas com o citado parceiro, é sobre a inifinitude e o a finitude do ser humano, um dualismo entre o físico e o mental. Essa linha embarca questões reflexivas a respeito dos ciclos da vida humana. Basicamente, a sonoridade de “Humano” é folk e blues, com inspirações de Nick Drake e Bert Jansch.
- O segundo disco é “Delta Blues” (spotify), nome em alusão à um formato blues datado como um dos mais antigos, talvez como também o mais “puro” e forte. As sete canções compostas solitariamente são baseadas no blues, mas com pitadas elementares da música brasileira. Em “Delta Blues”, Gabriel reflete temas como saudade, amor, luta, liberdade. Há ainda a mensagem de que é possível transformar a vida e o mundo por meio da arte, a qual ele chama de “algo maior”.
- Por fim, o terceiro e o mais recente disco: “Mantiqueira Blues” (spotify). Na contra maré dos anteriores, o álbum de 11 faixas tem no social como principal preocupação. Lançado em 2021, no auge da pandemia, o trabalho é voltado a dor e sofrimento causados pelo coronavirús, assim como a críticas ao governo Bolsonaro em relação a administração do período pandêmico. Com poesias de Vinicius Guimarães, o álbum é essencialmente blues, e inspirado em músicos brasileiros que investiram no gênero.
Matheus Luzi – Gabriel, como era o ambiente musical em sua casa, na sua infância? Como você avalia a importância dessa fase de sua vida para o que você faz atualmente?
Gabriel Gabrera – O meu pai, José do Carmo, sempre gostou muito de música, da moda raiz, principalmente, e sendo assim ouvíamos muita música em casa. Ele também tocava violão e desde os tempos da “roça”, em meados de 1960, no Rio Comprido, município de Delfim Moreira/MG, meu pai se apresentava com seu primo em festas e quermesses. Mais tarde, já casado com minha mãe, Helena, ele sempre esteve envolvido com a música na igreja, principalmente, mas, me lembro de vezes que fomos à casa de seu primo “Tonho”, que tocava acordeom… Ele levava seu violão e juntos passavam a noite cantando as “moda”. Um pouco depois, meu irmão Rodolfo se interessou pela guitarra elétrica, e conheceu um tal de “rock’n’roll”. A partir daí, tudo mudou. Foi quando eu descobri e pude sentir a música. Eu tinha cerca de 10 anos, quando comecei a tocar guitarra.
Acredito que meu interesse, a vontade de fazer música, foi por sempre ter muito contato com ela e desde pequeno já estar familiarizado com ela. E ver meu pai e meu irmão tocando instrumentos, ou seja, fazendo música, foi inspirador!
Matheus Luzi – Você é músico, mas também poeta. Nessa perspectiva, quem é o Gabriel letrista/poeta e quem é o Gabriel músico? De que forma esses dois conversam?
Gabriel Gabrera – Acho poeta um pouco forte pra mim (rs), poeta é meu amigo e parceiro Vinicius Guimarães, eu apenas escrevo algumas canções. Bom, quem me conhece sabe, sou daquele tipo quieto (rs). Guardo pra mim sentimentos e sensações e acho que o que vejo ou o que sinto e não coloco pra fora, acaba saindo nas letras. Sempre tento colocar minhas questões de uma forma que possa servir também a outras pessoas. São temas do cotidiano, relacionamentos, política, medos, anseios… Como “Nina Simone” eu acredito que a função do artista seja de refletir seu tempo. E em tempos de Bolsonaro, o que se vê é aumento da fome, da desigualdade, da intolerância… São tempos ruins e nos atentarmos a isso é fundamental para que busquemos melhorar enquato sociedade. Sendo a música uma forma de amplificar vozes, acho que sua função social é fundamental.
A música é algo que está dentro de mim, e questões emocionais acabam impactando diretamente no “som”. Estou sempre atrás de sons “diferentes” na questão de acordes, e na experimentação eu acabo encontrando mais elementos que podem reforçar ou disfarçar esses sentimentos, dependendo da intenção da obra.
Acredito que música e letra devem agir de forma a se complementarem, mas não necessariamente precisam concordar, a intenção da mensagem é mais importante. É isso o que busco, às vezes faço primeiro a letra, às vezes vem à música, e mais raramente, vem letra e música juntas. Mas, procuro fortalecer a mensagem, de forma que a letra e música funcionarem como ferramenta.
Matheus Luzi – Em suas músicas, até que ponto o blues é a inspiração?
Gabriel Gabrera – Pra mim, antes da música, o Blues é sentimento. Ouvindo Blues antigo, principalmente do Delta do Rio Mississippi, é como se ouvisse a alma do Homem, com todas as suas dores. Para mim, o Blues é o que melhor expressa os sentimentos e a forma da estrutura musical acabou se tornando a base da música que ouvimos hoje. O Blues está no Rock, no Pop, na música eletrônica.
A principal inspiração do Blues pra mim é a forma de expressão e toda a bagagem sentimental aliada ao estilo. No Blues eu encontrei a melhor forma para me expressar.
Matheus Luzi – Em release, você comenta que, apesar de vir do rock e do blues, não se prende a eles. [COMENTE]
Gabriel Gabrera – Sim, correto. No caso, seria mais quanto ao estilo musical. Mas, até mesmo no Blues e principalmente no Rock, há tantos subgêneros que acredito que a relação com o estilo inicial seja relativo. Pode ser que a relação seja quanto a atitude, talvez quanto a estrutura da música ou do texto, não necessariamente ao estilo musical. E, sendo Blues ou Rock, acima da tudo é Música. A minha busca está em descobrir novos sons, ir ao limite do estilo, experimentar. E se for preciso experimentar outras coisas fora do estilo, eu não vejo problema algum, contanto que seja verdadeiro.
Matheus Luzi – Você é capaz de “resumir” as temáticas que você traz em suas canções? Afinal, o que mais está em sua mente e que acaba por sair dela e ir para suas músicas?
Gabriel Gabrera – Bom, as temáticas variam de acordo com o trabalho. Por exemplo, no álbum Humano de 2017, parceria com o amigo poeta Vinicius Guimarães. Procuramos explorar o Ser Humano, no caso de emoções e sentimentos, na possibilidade de sermos infinitos em pensamento, mesmo sendo seres finitos. Até mesmo traços genéticos, o que nos define enquanto pessoa física, características familiares. Eu diria que é um álbum mais conceitual, filosófico…
No trabalho Delta Blues, falo um pouco sobre relacionamentos, sonhos, mas também abordo temas exteriores, no caso da faixa “Bota de Aço”, em que apresento uma visão ao que poderia vir depois do golpe contra a presidente Dilma Roussef.
No caso do recente trabalho Mantiqueira Blues, estávamos no meio da pandemia do novo Coronavirus, dessa forma todo o medo, a insegurança ao que estávamos enfrentando e o total descaso por parte do poder público está presente no álbum. Ultimamente tenho escrito mais sobre o que envolve a sociedade, devido ao agravamento da crise político/social. Enfim, sempre procuro refletir minha realidade atual baseada na minha visão de mundo, por isso os temas podem variar de acordo com o momento.
Matheus Luzi – O quanto as “loucuras e maravilhas” do mundo influenciam na sua arte?
Gabriel Gabrera – Por eu ser daquele tipo mais quieto, de canto, acabou que me tornei um bom observador. E minha música, a forma com que fui desenvolvendo o meu jeito de fazer música e, principalmente, escrever, mudou um pouco desde que me descobri como compositor. No início, eu procurei explorar ou pôr pra fora mais questões psicológicas e emocionais, questões que vinham de dentro. De acordo com o tempo, me descobri mais observador, e nesse sentido, a forma de escrever meus pensamentos acabou sendo fortemente influenciado pelo exterior, no caso as loucuras e maravilhas. Acredito que o que vem de fora, acaba tendo um impacto significativo no jeito com que faço música. E isso acaba fortalecendo a ideia de arte em desenvolvimento. A arte, como o tempo, está sempre em movimento, e mesmo que eu escrevesse mais sobre questões internas, com certeza eu seria afetado pelo meio externo. Pra mim, não há como desvencilhar as loucuras e maravilhas do mundo, como as loucuras e maravilhas que trago dentro de mim, pois como sou um ser social e inserido em um meio social brasileiro e latino americano, não vejo como separar isso.
Sendo assim, acredito que o mundo, ou minha visão sobre, influencia muito no que faço.
Matheus Luzi – Você poderia mencionar algumas obras suas e falar sobre elas? Pode ser uma canção, duas, três, um disco, o que você preferir.
Gabriel Gabrera – Bom, eu gostaria de comentar sobre meu mais recente trabalho o álbum Mantiqueira Blues, lançado em abril de 2021. O álbum está disponível em diversas plataformas de streaming e, por ser o mais recente, é o mais maduro musicalmente. Acredito que aos poucos vou definindo uma cara para o meu trabalho, tanto nas composições quanto estruturas e arranjos. Em todos os trabalhos sempre procurei dar uma sequencia, de forma a contar uma história ou trazer elementos que conversam entre si dizendo algo maior.
No caso do álbum Mantiqueira Blues, eu tentei mostrar um pouco das várias faces que enxergava no momento de pandemia. E o poeta Vinicius Guimarães me ajudou a apresentar esse olhar. Posso dar como exemplo, as faixas Nossos Tempos e Lágrimas. A primeira, um questionamento sobre a apatia frente à forma como se desenvolvia as políticas sociais no país; e a segunda, sobre o Crime da Barragem de Brumadinho, cometido pela Vale, que nesse ano completou dois anos. Mas, trago também questões que promovam a tolerância, ou ao menos o questionamento de atitudes e posicionamentos, como no caso da faixa Covarde. Como sempre, trago algo sobre relacionamentos, tanto na faixa Dois Pares, sobre minhas idas e vindas pela Serra da Mantiqueira em tempos de namoro, quanto na faixa O Melhor em Nós, onde lembro a história e crença do Homem que foi meu pai.
Acho que dos trabalhos, é o que melhor me representa atualmente.
Matheus Luzi – A sua música se distancia bastante do mainstream, eu acredito. Você também vê assim?
Gabriel Gabrera – Acredito que sim, e isso me deixa muito mais confortável e livre para poder desenvolver meu trabalho da forma com que eu ache melhor ou acredito que deva ser feito. Antes de tentar comunicar algo, a intenção deve ser verdadeira, no sentido de condizer com o que eu sinto, penso e enxergo do mundo. Muitas obras do mainstream, além de ter um investimento muito maior do que a grande maioria dos músicos pode investir acabam se atentando mais à forma, que deu certo, do que ao conteúdo. Eu prefiro buscar novas formas, experimentar estilos e sons, e acredito que isso só levará a mais mudanças. Tanto no meu jeito de compor quanto na forma de fazer música, e consequentemente enxergar a realidade.
Matheus Luzi – Você certamente já recebeu vários feedback sobre sua arte. Quais foram eles?
Gabriel Gabrera – Sim, principalmente desse último trabalho, o Mantiqueira Blues. A grande maioria veio dos meus amigos, que me acompanham há algum tempo, e acho que o amadurecimento musical e a sobriedade das composições foi o que mais teve retorno. A questão da qualidade da produção foi algo que foi bastante elogiado também, além da mix e máster do meu amigo Zé Abreu, do estúdio AbreuRoad, em Pedralva, que fez total diferença.
Uma coisa que chamou bastante atenção também foi a forma como abordei o Blues, não me limitando ao Blues clássico. Procurei referências de trabalhos mais modernos de Blues, como o álbum Riding With the King, de 2001, parceria entre BB King e Eric Clapton, também trabalhos de blueseiros como Eric Bibb e RL Burnside.
Matheus Luzi – Agora te dou carta branca para você falar o que bem entender.
Gabriel Gabrera – Uma coisa que tenho aprendido em todos esses anos trabalhando com a música, os projetos e sonhos, é que o trabalho ou a realidade que vamos criar, da forma que gostaríamos de ver e ouvir deve começar dentro da gente. E tendo isso como princípio, parte-se para a ação, para o trabalho. Acredito que todo o Homem tenha a possibilidade de transformar tudo o que está a sua volta, seja na construção de diálogo, na construção de uma sociedade mais justa, na construção de um trabalho. Dadas às devidas condições, claro. Se quiser ver alguma mudança, lute por ela, viva essa mudança, seja essa mudança e faça o que acredita que deva fazer para essa mudança acontecer. Sempre respeitando e escutando os que estão à sua volta e quem veio antes de nós.
De resto, é trabalho duro. Nunca perca de vista o que busca e lute sempre. #forabolsonaro
Foto de capa: Glalber Monteiro / Divulgação.