Gilberto Gil e Caetano Veloso em exílio na Europa, entre 1969 e 1972. Foto: Reprodução do site da Folha de S. Paulo.
A censura do período militar no Brasil, principalmente após o Ato Institucional Número 5 (AI-5), ainda é de conhecimento superficial do grande público, que conhece apenas o “grosso”: prisões, mortes, destruição de liberdades, autoritarismo etc. As explicações mais amplas acabam não sendo ouvidas.
Quebrar essa fronteira é um desafio para muitos, como é o caso dos jornalistas e escritores João Pimentel e Zé McGill, autores do livro “Mordaça: Histórias de Música e Censura em Tempos Autoritários”, lançado em dezembro de 2021 pela Editora Sonora.
Iniciei a matéria com essa menção justamente por enxergar nesta obra novas histórias a respeito deste momento do nosso país, além de proporcionar conteúdos de fácil digestão e interessantes, até “pop”, eu diria.
A playlist “Mordaça” é acompanhante do livro.
Ela condensa, na ordem, todas as músicas citadas, e está disponível em CQ Code nas páginas da obra.
“Mordaça” foi escrito entre 2018 e 2021, baseado em entrevistas longas e detalhadas com artistas impactados diretamente pela ditadura. Entretanto, é inusitado o desapego aos personagens por parte dos autores. O valor está nas histórias em si.
Esse cenário conceitual estruturado pelos jornalistas permite que figuras não populares como Genilson Barbosa, Eduardo Gudin e Rildo Hora, entre outros, tivessem seus depoimentos destacados, algo pouco minerado pelos pesquisadores da área.
Em síntese, podemos dizer que o livro objetiva uma discussão ampla e complexa sobre o embate entre música e censura, arte e autoritarismo. Essa dinâmica, vale dizer, é leve e acessível a todos, como pontuam os entrevistadores.
A publicação é um resgate do AI-5, que completou cinco décadas em 2018. Porém, para Pimentel e McGill, assim como em unanimidade para os entrevistados, o livro serve de lembrete em relação ao governo Bolsonaro.
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Matheus Luzi – Antes de tudo, apresentem-se aos nossos leitores!
João Pimentel – Oi, sou João Pimentel, jornalista, compositor e escritor. Sou cria da redação do Jornal O Globo, onde atuei como repórter do Jornal de Bairros e repórter e crítico musical do Segundo Caderno, de 1995 a 2011. Sou autor de livros como “Jorge Aragão, Enredo do meu samba” e do documentário “Jards Macalé, um morcego na porta principal”.
Zé McGill – Olá, Matheus. Sou o Zé McGill, nasci no estado do Oregon, nos Estados Unidos, mas vivo no Rio de Janeiro desde os 3 meses de idade. Apesar de formado em jornalismo, o “Mordaça” é meu primeiro trabalho realmente jornalístico. Antes dele, publiquei três livro de ficção: “Na barriga do boi” (contos) e “Fantasmas de carne e osso” (também de contos, ambos pela editora 7 Letras), além do romance “Saquarema sete três”.
“Todo governo autoritário detesta o livre pensamento, a contraposição de ideias. A Censura sempre foi instrumento deste tipo de regime.”, João Pimentel.
Matheus Luzi – Do ponto de vista dos artistas entrevistados, o que foi a censura moral e política daqueles tempos? A partir do livro, quais estereótipos poderão ser quebrados sobre o tema?
João Pimentel – A Censura foi algo terrível que atingiu diretamente os artistas, de uma forma geral. A música, como arte mais direta e popular, foi cerceada de todas as formas. Todo governo autoritário detesta o livre pensamento, a contraposição de ideias. A Censura sempre foi instrumento deste tipo de regime. Somos um país extremamente moralista, muitas vezes de um falso moralismo endêmico. Na ditadura militar e no Estado Novo, tempos mais duros, esse cerceamento avançou para o campo político por questões óbvias, diretas, a oposição ferrenha, a luta armada, etc. Não creio em quebra de estereótipo, mas em jogar uma luz sobre esta “instituição medonha” chamada censura e seus desdobramentos como a perseguição e a tortura.
Zé McGill – A censura moral sempre existiu no Brasil, infelizmente. Já a censura política teve seu auge durante o regime militar, mas ainda mostra as caras de vez em quando. Talvez um estereótipo que o “Mordaça” possa ajudar a quebrar seja o dos censores como técnicos competentes e cultos. O livro nos mostra muitas bizarrices cometidas pelos censores, como, por exemplo, o veto a duas músicas do Edu Lobo que eram… instrumentais. Há também o caso do Caetano Veloso, que teve a música “Nine out of ten” quase censurada porque o censor desconhecia e desconfiou da palavra “reggae”, que faz parte da letra.
“Talvez um estereótipo que o “Mordaça” possa ajudar a quebrar seja o dos censores como técnicos competentes e cultos.”, Zé McGill.
Matheus Luzi – Muitas obras retratam e contam histórias sobre este período militar. Considerando-os, o que “Mordaça” proporciona de novo e especial aos leitores?
João Pimentel – “Mordaça” traz histórias inéditas como a do advogado João Carlos Muller, do produtor Genilson Barbosa, Paulinho da Viola conta a inusitada história de “Sinal fechado”, Ney Matogrosso de uma censura por conta de seus trejeitos e olhares. O livro também atualiza versões de vivência dos principais artistas do período e, principalmente, reúne histórias espalhadas por diversos livros. E, mais que tudo, traz para hoje a discussão em tempos completamente absurdos, quando propositalmente negam este passado tão recente, exaltando torturadores e milicianos.
Zé McGill – Além do que já disse o João, acho que o formato do “Mordaça” faz dele uma obra única. Lembro que, enquanto eu pesquisava e escrevia o livro, várias vezes a mesma pergunta me vinha à cabeça: “Como é possível que ninguém tenha ainda escrito esse livro no Brasil?”. Ter os mais de 30 artistas entrevistados num mesmo livro sobre censura já é algo inédito, mas, fora isso, optamos também por dar voz a esses artistas. Alguns dos capítulos têm quase 50% de texto na voz deles, nos depoimentos exclusivos de Chico, Gil, Caetano, Martinho, Joyce, Beth Carvalho, Clemente (da banda Inocentes), BNegão (do Planet Hemp)… Fizemos essa escolha de entrevistar somente quem estivesse vivo para contar as histórias.
“Ter os mais de 30 artistas entrevistados num mesmo livro sobre censura já é algo inédito, mas, fora isso, optamos também por dar voz a esses artistas.”, Zé McGill
Matheus Luzi – O livro se estende ao atual momento político do nosso país. Haveria uma síntese a respeito do que a pesquisa/entrevistas do livro levantou sobre alguma possível ofensa à democracia brasileira, principalmente próxima as eleições de outubro deste ano? Ou seja, o que os artistas entrevistados disseram sobre o tema, em resumo?
João Pimentel – O nosso posfácio traz um apanhado de episódios de censura nos anos Bolsonaro e nos anteriores. Da negativa do presidente de assinar o Prêmio Camões, dado a Chico Buarque, à censura da exposição “Queer” museu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, no fim de 2017. O próprio governo Bolsonaro é uma ofensa à democracia. Percebemos nos entrevistados uma vontade grande de falar sobre o tema. Todos estão engasgados com o que vem acontecendo nos últimos anos. Cada um sabe onde a dor lhe dói.
Não vivemos uma ditadura militar como naquele período, mas vivemos tempos absurdamente autoritários. Somos governados por um presidente negacionista, que se cercou de militares, que aparelha a polícia, que arma os cidadãos. Que tipo de cidadão quer portar uma arma? A censura hoje existe no corte de verbas para a cultura, na perseguição a artistas nas redes sociais, nas fake News, nas ameaças diretas a quem não reza nessa cartilha insana, moralista, terraplanista. Acho que o nosso livro é uma contribuição contra este tipo de pensamento alienado e burro. Infelizmente precisamos lembrar, sempre, que a geração mais sensível e genial de artistas brasileiros passou por esse tormento.
Zé McGill – Pois é. Durante as entrevistas, a maioria dos artistas acabava naturalmente falando sobre os tenebrosos anos que estamos vivendo, e é claro que isso tudo entrou nos capítulos. O governo Bozonazi conseguiu promover um desmonte do ambiente cultural brasileiro através da criação de obstáculos burocráticos que funcionam como uma nova forma de censura. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o filme do Wagner Moura sobre Marighella. O lançamento do filme foi adiado por muito tempo por obra do governo. Além de acabar com o Ministério da Cultura, o presidente disse coisas como: “Se não puder ter filtro, nós extinguiremos a Ancine”. Ou seja, a censura agora é chamada de filtro. Optamos pelo subtítulo “Histórias de Música e Censura em Tempos Autoritários” justamente para indicar que não tratamos apenas dos anos da ditadura militar no livro.
“Optamos pelo subtítulo “Histórias de Música e Censura em Tempos Autoritários” justamente para indicar que não tratamos apenas dos anos da ditadura militar no livro.”, Zé McGill
Matheus Luzi – O livro relata a perseguição, as agressões e o silenciamento que a arte sofreu, bem como as estratégias dos artistas em burlar os militares. É possível um resumo desses três aspectos, seguindo as pesquisas levantadas?
João Pimentel – É um livro de entrevistas, de relatos, não de pesquisa, especificamente. Mas é evidente que perseguições, agressões, silenciamento eram artifícios destes tempos sombrios. Todos os capítulos discorrem sobre isso. O que vemos hoje é uma tentativa, através de outros meios, já citados acima, de se “cancelar” o pensamento, as ideias.
Zé McGill – Acho que o melhor exemplo de perseguição no livro é mesmo o do Chico Buarque, que nos conta como a aprovação (por engano) da música “Apesar de você” foi a origem de seus muitos problemas com os censores e os militares. Sobre as agressões, destaco os capítulos do Geraldo Azevedo, que relata as diversas torturas que sofreu quando esteve preso, e o capítulo do Ney Matogrosso, que nos conta que viu um cara morrer ao seu lado, dentro de uma cela, quando foi preso por “vadiagem”, nos anos 60. Já com relação às maneiras encontradas pelos artistas para burlar a censura, são muitas… Um bom exemplo talvez seja o do Nelson Motta, que explica que alterava a ordem dos versos na letra, para mudar o sentido e conseguir as aprovações. E tem o caso do Paulo César Pinheiro, que misturava suas letras “subversivas” numa pasta que continha as letras de outros autores da sua gravadora que raramente eram censurados.
Matheus Luzi – O livro foi lançado em dezembro. Portanto, vocês já devem ter recebido feedbacks do público em geral, da imprensa e da comunidade artística. Quais foram os comentários, a aceitação, e as críticas?
João Pimentel – Basta uma pesquisa nas redes para você ver a quantidade de matérias publicadas em jornais do Rio, de São Paulo, de Belo Horizonte, de Porto Alegre, de Recife, Fortaleza, Salvador, e até na Europa, pelo El País. Foi um retorno absolutamente positivo e em grande escala. Muitos artistas como Leo Jaime, Marcos Valle, Clemente, além da turma da política, como os vereadores Chico Alencar, Lindberg Farias, Tarcísio Motta e Reymont fizeram postagens sobre o livro. Apesar de confiantes de termos feito um trabalho importante, nos surpreendemos com toda a discussão sobre o tema.
Zé McGill – Além do que disse o João, tem também o outro lado… Alguns dos artistas que postaram sobre o livro foram atacados por bolsominions, pelas milícias digitais nas redes sociais. E nós também, os autores. Mas já esperávamos por isso e eu opto por não responder a pessoas que ainda apoiam esse governo mesmo depois de ele ter causado um genocídio na pandemia, de ter destruído a economia do país, de ter promovido desmatamento recorde das nossas florestas e de ter acabado com a imagem do Brasil no exterior, entre outras atrocidades.
“Não questionamos a qualidade da obra de cada artista, expoentes de seus segmentos, mas a qualidade de suas histórias e vivências. Por vezes, personagens menos conhecidos trazem as melhores histórias. Acho que traçamos um painel heterogêneo, diversificado e rico de relatos.”, João Pimentel.
Matheus Luzi – Essa não é uma pergunta, mas um comentário que pode gerar uma reflexão para encerrar nossa conversa. Notei que alguns entrevistados, como Philippe Seabra, Rildo Hora, Eduardo Gudin, e outros, não são tão populares quanto Chico e Gil, ainda que de semelhante importância para a nossa música. Vejo isso como uma oportunidade de conhecermos a ditadura e a censura com mais plenitude. Afinal, estão aqui personagens não comumente explorados.
João Pimentel – Acho que há um equilíbrio entre os personagens. Não questionamos a qualidade da obra de cada artista, expoentes de seus segmentos, mas a qualidade de suas histórias e vivências. Por vezes, personagens menos conhecidos trazem as melhores histórias. Acho que traçamos um painel heterogêneo, diversificado e rico de relatos.
Zé McGill – Foi bom você lembrar disso porque, na minha visão, alguns dos capítulos mais interessantes são aqueles sobre os personagens menos famosos. É natural que os leitores se interessem mais pelos capítulos de Chico, Caetano e Gil, por exemplo. No entanto, acho legal deixar aqui este recado: não deixem de ler os capítulos sobre os personagens menos conhecidos. O capítulo do Genilson Barbosa, por exemplo, em que este ex-funcionário da gravadora RCA nos conta como fazia para subornar os censores, é o meu favorito do livro. E outros guardam histórias também muitos ricas, como o do advogado João Carlos Muller (responsável pela liberação de alguns dos maiores clássicos da MPB) e o do músico Ricardo Villas (que foi uma das pessoas “trocadas” pelo embaixador norte-americano Charles Elbrick).
“[…] acho legal deixar aqui este recado: não deixem de ler os capítulos sobre os personagens menos conhecidos.”, Zé McGill.