O Mato Grosso do Sul é um estado independente e unidade da Federação desde o final dos anos 1970 quando se desmembrou oficialmente do Estado de Mato Grosso. O Estado não é frequentemente iluminado pelos holofotes da imprensa e da população brasileira como um todo. Alguns fatores colaboram: o Estado é novo se comparado aos demais; sua população é relativamente pequena (pouco mais de 2.700 milhões de habitantes, segundo dados do último levantamento do IBGE); e está localizado na região Centro-Oeste, longe dos litorais e dos grandes centros. Porém, por trás desta região, há uma história, cultura e artes únicas, que já se desenhavam muito antes do desmembramento do Estado de Mato Grosso.
Se Mato Grosso do Sul tem sua importância menosprezada muitas das vezes, as artes, a cultura e a história deste Estado e do seu povo carece de reconhecimento à nível nacional. E é a partir desta problemática que surgiu a iniciativa da Arte Brasileira em produzir um conteúdo a fim de jogar luz às estas questões. Para isso, recebemos como entrevistado o instrumentista, cantor e compositor paranaense Maringa Borgert, radicado em Três Lagoas (MS) desde 2011. Em poucas (e riquíssimas) linhas, o artista nos proporcionou um passeio dinâmico por Mato Grosso do Sul. Desta forma, é Maringa Borgert que irá nos guiar nesta aventura sul-mato-grossense.
Depois desta publicação, você, caro leitor, sentirá o quanto o Brasil, na verdade, é “Brasis”. Sintam-se à vontade para comentar, criticar, elogiar, enfim. Confira a entrevista na sequência.
A ENTREVISTA
Matheus Luzi – Em resumo, o que é, para você, a cultura do povo sul-mato-grossense? Quais seus principais costumes, atividades, etc?
Maringá – A cultura do nosso estado é de um Brasil de dentro. Longe dos litorais. O nosso litoral é o do Rio Paraguai, como o saudoso, Geraldo Roca definia como litoral central. Nossa fronteira com o Paraguai e Bolívia nos traz essa influência rica e ajuda-nos em nossa identidade. Tem uns versos de uma canção de Almir Sater e Paulo Simões, chamada Sonhos Guaranis em que se diz, “e as vezes me sinto assim; ao revelar que eu vim; da fronteira onde o Brasil foi Paraguai”. Nesta canção o poeta/letrista, Paulo Simões nos revela a herança formadora do nosso estado, o que do apesar do maior conflito armado da América do Sul, nós construímos com nossos hermanos um lugar híbrido de nossos costumes, crenças, arte e tudo mais.
O que me ainda aflige no nosso estado, é o qual pertencimento à ele. Pois, moro numa divisa com o estado de São Paulo. E sei que a gente se sente mais paulista do que sul-mato-grossense. Acredito que, não houve por parte do poder público ainda, um plano de políticas públicas que integrasse o estado culturalmente como um todo. Sei que cada região tem suas peculiaridades, não dá pra dizer que o jeitão de viver do peão do cerrado da região do bolsão é o mesmo do pantaneiro. Mas, sei que os dois comem chipa, sopa paraguaia, saltenha e tomam tereré [risos]. Todo sul-mato-grossense gosta de dançar um rasqueado e faz o grito do Sapucay quando o sanfoneiro puxa um Chamamé.
Matheus Luzi – E as artes sul-mato-grossenses? É possível dizer que elas são, em determinada medida, uniformes, ou seja, carregam elementos em comum?
Maringá – Sim, a arte sempre é um instrumento de se fazer justiça, acredito nisso. E quando você vê um quadro do Humberto Espíndola retratando a Bovinocultura, ouve um disco do Grupo Acaba (os Canta-dores do Pantanal), ou descobre a obra de Conceição dos Bugres, se vê de que os artistas estão dando vida, estão retratando mazelas, estão dando vozes àqueles que foram calados. Num estado em que se têm uma dívida impagável com os povos originários, em que se têm a maior planície alagada do mundo ameaçada, a arte tem por ser guardiã desses anseios de bem comum.
Matheus Luzi – Neste aspecto, o que diferencia o Estado dos demais?
Maringá – Primeiro por sermos um estado novo [risos]… não o estado novo de 1937 do Getúlio Vargas, por sinal, aquele em que se tinha um sanguinário representante de governo chamado Filinto Muller e que era daqui, do ainda estado uno, Mato Grosso. Mas acredito nas peculiaridades que temos, a formação híbrida das duas fronteiras, o rio Paraguai como essa corrente navegável de alma guarani, a Serra de Maracajú que separa as duas bacias hidrográficas do Paraná e do Paraguai (só pra retratar temos os dois rios em nosso estado), o nosso Pantanal, os nossos povos originários (Kadiwéu, Guató, Tereno, Ofaié, Guarani-kaiowa e os antigos guerreiros Guaicurus). Ainda temos Bonito, Corumbá, temos a terceira maior colônia japonesa que nos trouxeram o sobá na feira central de Campo Grande. E se você for nesta feira e pedir um espetinho de carne ele vem acompanhado com mandioca e shoyo.
Matheus Luzi – Qual foi o impacto da separação do Estado de Mato Grosso nas artes e na cultura em geral? É possível traçar uma dinâmica cultural que distancie ontem e hoje os dois estados?
Maringá – Em 1977, quando houve a divisão dos estados, por aqui se apressou em criar uma identidade cultural para nosso estado. Pelo o que se relata, e pelo o que é normal em qualquer sanha separatista. O que se têm que levar em conta é que o povo nunca deixa de produzir cultura, o povo não é caricato. Machado de Assis dizia que “existem dois Brasís, o Brasil oficial e o Brasil real”. O Brasil oficial, nesse caso, foram os donos do poder que separam os estados, o Brasil real foi o povo que continuaram a fazer poesia, música, festa, credo… pra dizer que a identidade já se tinha. Já se tinham ido a Guerra do Paraguai, já tínhamos Zacarias Mourão e todos os pioneiros da música sul-mato-grossense, já comíamos chipa, sobá, tomávamos tereré e já tínhamos o Toro Candil em Porto Murtinho.
Claro que, em Campo Grande acontecia uma efervescência cultural, uma cena dos festivais, algo que estava na TV brasileira na época. Por aqui, a professora, Maria da Glória Sá Rosa (Glorinha), era a entusiasta que movimentava essa demanda. Desse movimento surgiu grandes nomes da música que ficaram conhecidos como, Prata da Casa. Dentre eles, Almir Sater, Tetê Espíndola, Alzira Espíndola, Geraldo Espíndola, Paulo Simões, entre outros.
Agora, falando de algo que não nos distancia, é o fato de sempre nos chamarmos de “Mato Grosso” [risos]… digo, por moradores de outros estados. Eu sempre estou disposto a interromper a conversa e dizer, “do Sul” [risos]!
O Mato Grosso também tem Pantanal, numa menor porção, mas tem. Eles têm viola de côcho também, o Siriri, o cururu. Também tem o Agronegócio, acho que por aí, continuamos bem parecidos [risos]!
Mas, a dinâmica que nos distancia, que nos distanciou é o que já respondi acima, é o que já existia, o Sul tem muito mais da cultura paraguaia e boliviana. Com a separação só se acentuou.
Matheus Luzi – Quais gêneros musicais fazem parte da raiz cultural do Mato Grosso do Sul? Existe um limite ou um padrão?
Maringá – Nossa música em si é a música ternária de fronteira. Nossa música pulsa 3 por 4 ou 6 por 8. Segue o compasso. Chamamé, a Guarânia e a Polca paraguaia formam a Gênese musical sul-mato-grossense. O rasqueado, nada mais é do que um dialeto da polca paraguaia. Coisas que a população ribeirinha do rio Paraguai pode dizer, “é só subir o rio que os sotaques vão mudando”.
No Pantanal tem-se a viola de côcho, instrumento mande in Pantanal. Nele se tocam os cururus e os siriris. As trovas do Curueiros se estendem até os dias de hoje e mantém a fabricação, é modo rudimentar desse instrumento.
Em Campo Grande se inventaram no início dos anos 1980, a Polca-rock. Nasceu com parte dos artistas da geração Prata da Casa. Esta geração ficou conhecida por trazer uma música mais urbana para o MS, sem desprender das raízes.
Matheus Luzi – Para você, quais os “maiores nomes” das artes regionais do Estado? Há algumas obras que merecem destaque e que, principalmente, refletem a vida do povo sul-mato-grossense?
Maringá – Humberto Espíndola e a sua Bovinocultura. Manoel de Barros, apesar de ter nascido em Cuiabá, mas aqui que ele morou a maior parte de seu tempo e, portanto, é nosso [risos]. Conceição dos Bugres, uma grande escultora de origem indígena. Almir Sater, sem dúvidas é um dos maiores artistas da atualidade. Helena Meireles, a dama da viola nascida em Bataguaçu. Délio e Delinha foi a dupla mais importante para música do MS, pioneiros quando ainda os estados eram um só. Glauce Rocha e sua arte da interpretação. Ney Matogrosso é um grande nome da música brasileira e nasceu em Bela Vista-MS.
Sobre obras que merecem destaque, eu destacaria a obra completa do Grupo Acaba, eu gostaria que o Brasil conhecesse Dino Rocha, Zé Correia, Amambai e Amambaí, Paulo Simões, Geraldo Espíndola, Geraldo Roca, Alzira Espíndola, Tetê Espíndola (acredito que já conhecem) e ouvisse o disco “Prata da Casa”. Gostaria que o mundo conhecesse as cerâmicas dos povos Kadiwéus e o artesanato dos Terenos.
Matheus Luzi – O que você espera das artes sul-mato-grossenses neste século XXI? O que você tem escutado e apreciado que pode nos dar uma direção neste entendimento?
Maringá – A arte é dinâmica, é de vanguarda e por isso sei que “o novo sempre vem”, como dizia Belchior. As novas gerações sempre vão pôr elementos do seu tempo nas tradições. O artista tem que ter essa conexão com o passado, com a ancestralidade. E tem que ser guardião do seu povo e de seu torrão. Como dizia Tolstói, “se queres ser universal, pinte primeiro a sua aldeia”.
É isso que espero, e o grande exemplo que posso dar é Bro’s Mc’s de Dourados. Um grupo indígena de rap que tem pela arte este instrumento de denúncia quanto a negação de sua história e sua existência.
Matheus Luzi – Esta última pergunta é uma carta branca. Diga o que gostaria de ter dito nesta entrevista e que eu não perguntei.
Maringá – Mato Grosso do Sul é o Salto do Sucuriú, a lavagem dos santos no São João de Corumbá, é a Praça da Bolívia e seus Domingos quentes, o peão pantaneiro e seu cavalo, é a comitiva que tira o gado nas cheias do Pantanal e o devolve quando as águas baixam, é a festa da linguiça em Maracajú, do Toro Candil em Porto Murtinho, é o Ofaié acuado na sua aldeia, o Guarani-kaiowa pedindo por demarcação já, o Rio Verde, também Rio Paraná e o Jupiá.
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Sobre Maringa Borgert
Nascido em Novas Tebas (Paraná) e radicado em Três Lagoas (Mato Grosso do Sul) desde 2011. Foi nesta cidade, divisa com o Estado de São Paulo, que sua carreira artística deslanchou em apresentações ao vivo, como compositor e nos estúdios de gravações como cantautor. Maringa canta e compõe “a memória coletiva do povo”, com apelo para a sonoridade e poesia caipira, regionalista, fronteiriça, mineira, nordestina, brasileira. Artista do Brasil Rural (ou Brasil Real, como dizia Machado de Assis), Maringa formou, em 2013, o Duo Caminheiro Zé com o parceiro musical Raphael Vital. Juntos, compuseram “os rios, os pássaros, o cerrado e o povo de sua terra”, como ele mesmo diz.
O artista teve sua arte reconhecida em várias ocasiões, citarei algumas: sua composição “Trilhos do Cem”, com Raphael Vital, foi escolhida a canção do “Centenário de Três Lagoas”; participou de diversos festivais regionais e inter-regionais. Em 2022, teve sua música “Morada do Sossego” (álbum “Cantigas de Poleiro”, 2017) apresentada no remake da Novela Pantanal (TV Globo), interpretada pelo personagem Tibério (vivido pelo ator Guito). Também é uma figurada carimbada na cena três-lagoense, cidade no qual inaugurou recentemente duas casas culturais (Acapela CineTeatro e Casa Cultura Cajuína).
As canções de Maringa estão disponíveis na íntegra nas plataformas de streaming, desde 2017, quando lançou o álbum “Cantigas de Poleiro”, que antecedeu a chegada de outros dois álbuns e dois singles. Contudo, a discografia de Maringa enquanto Duo Caminheiro Zé não se encontra disponível completamente, apenas o CD “Caminheiro”, no Youtube.
Você pode seguir o artista no instagram @maringaborgert
CRÉDITOS
Capa da publicação | Maringa Borgert por Paulo Lins
Foto no meio da publicação | Maringa Borgert por Paulo Lins