18 de janeiro de 2025
Post Patrocinado - Eduardo Pastore

Graffiti Welfare – Revolving Shores

Resenha Musical por Eduardo Pastore

Normalmente, associamos música a histórias. Porém, haveria alguma relação entre música e território? Grafitti Welfare, o projeto de George Lattimore, joga luz sobre essa perspectiva. Após seis anos de gravações ao longo da madrugada, o álbum “Revolving Shores” constitui-se como um mapa, com direções para diferentes destinos sonoros, todos unidos pela vertente eletrônica, e cada qual com sua própria paisagem de batidas e sintetizadores. Ao ouvinte, cabe ligar o play e viajar pelos novos territórios mapeados por Lattimore, em seu álbum de estreia.

Ao passo que “Revolving Shores” possa perfeitamente ser trilha sonora de uma outra atividade, como cozinhar ou caminhar pelas ruas, para o ouvinte corajoso, Lattimore faz um convite à imersão, transgredindo a passividade de nosso consumo normal de canções para outro estado, o da escuta ativa.


Segundo Michael Spitzer, autor do brilhante livro “The Musical Human”, lançado em 2021, o comportamento normal do Ocidente em relação à música se tornou o consumo passivo. Conte quantas vezes você ouve canções enquanto faz outra coisa, e verá rapidamente que a escuta passiva é a situação dominante do nosso consumo de música atual. Nos acostumamos a ter uma experiência completamente passiva, sem questioná-la, e dessa forma, alienamos um direito natural, a musicalidade inata de cada ser humano. Renunciar a isso significa ignorar uma capacidade cerebral e corporal moldada por milhões de anos, a faculdade singular da música de gerar transcendência, a suspensão do cotidiano e seus problemas, nos transpondo para um estado de percepção em que a emoção gera experiências mais vívidas e significativas. E é esse resgate que propõe Grafitti Welfare: experimentar a música como um movimento transcendental. E a rota é o exercício da escuta ativa, de imersão.

Se nossa interação com a música no mundo concreto é algo passiva, Lattimore propõe inverter essa perspectiva. Assim, olhando a música pelo outro lado do espelho, ou “por dentro” das composições de “Revolving Shores”, como o single de abertura “Volume”, conseguimos enxergar um mundo repleto de vida. Cada uma das dez canções do álbum revela-se como máquinas de pensamento, que condensam em diferentes atmosferas sonoras um microuniverso particular, com alta capacidade dramática de evocar sentimentos. Essa percepção nos permite entender essas canções como rotas, caminhos emocionais que nos guiam por paisagens mentais. A primeira chave para entender “Revolving Shores” é revelada a partir da relação entre música e território.


A ligação da música com a geografia ao redor é antiga. De acordo com Michael Spitzer, esse é um dos motores da evolução do Homo Sapiens Musical, que nos legou um complexo aparato corporal de experimentar a musicalidade (apartada da linguagem). A teoria preenche uma série de lacunas que sempre inquietaram a humanidade em sua relação com a música, e o elemento chave é que a música está intimamente ligada ao movimento. Vistos à distância, seres humanos são animais (pontos de calor) em deslocamento por um determinado território. E são os mecanismos sensoriais e mecânicos do corpo que nos permitem a locomoção que possibilitam a maneira como percebemos e produzimos canções. Essa proposta exige o elo entre dois conceitos distintos, porém, interligados: movimento e emoção. Dada a grafia em inglês, é impossível deixar de notar que a segunda palavra surge como derivação da primeira.

Spitzer mobiliza diversos segmentos do conhecimento humano para escrever seu livro, as quais se pode destacar biologia, neurociência, arqueologia, antropologia e história natural e social. E o livro olha especialmente para trás, para explicar o presente e fazer provocações para o futuro da música. Dando um salto de milhões de anos, o destino musical do ser humano foi selado quando os primeiros hominídeos desceram das árvores e se puseram a caminhar sobre dois pés. Teorias recentes propõem que o bipedismo desencadeou a percepção do deslocamento como um ritmo – um passo depois do outro. O ritmo da caminhada é o motor que nos impulsiona entre o ponto A e o ponto B. É o que possibilita alcançarmos nosso destino, a depender do objetivo do momento, seja encontrar uma fonte de água fresca ou fugir de um mamute.

A caminhada precisa ser orientada, e nossos instrumentos de navegação são vários, sendo os olhos, inegavelmente, o principal. Porém, todos os outros sentidos estão constantemente ativos, o que na maior parte do tempo nos passa despercebido, pois a consciência processa um volume muito inferior à quantidade de dados processados pelo cérebro. Tato, audição e olfato disparam incessantemente dados sobre o ambiente ao redor. E a audição ganha especial importância, pois é capaz de perceber o que está invisível aos olhos, um réptil se esgueirando na moita ao lado da trilha, ou o som de uma cachoeira a algumas centenas de metros.


A neurociência está avançando para construir um elo entre o complexo mecanismo do ouvido e o sistema de percepção de ondas encontrado ao longo do corpo de peixes. O órgão de Corti, o núcleo da cóclea, ativado por ondas de ar (som), desenrolado, se assemelha ao mecanismo sensorial que peixes utilizam para sentir vibrações táteis da água, o que lhes permite ter dados sobre a correnteza ou a proximidade do cardume, predadores e navegar entre as ondas escuras do mar. Essa teoria elegante propõe que somos herdeiros do antigo mecanismo de deslocamento de peixes, o que nos legou a capacidade de conceber o deslocamento do som como movimento.

De forma esquemática, podemos escutar uma música como se ela se movesse e nós ficássemos parados, ou como se estivéssemos em movimento com ela. São dois tipos diferentes de movimento. O primeiro tipo se trata de observar a música “de fora”, percebendo seu movimento à distância. Podemos nos afastar do que está acontecendo na progressão harmônica e melódica, pensar no que a letra está falando, fazer associações com nossas memórias, lembrar da seção anterior ou antecipar o que pode vir na próxima estrofe. O segundo tipo trata-se de experimentar o movimento da música “por dentro”, numa imersão melódica propriamente dita, na qual seguimos a sucessão de notas como um fluxo contínuo de notas, num estado de ultra concentração da percepção de som. Claro, trata-se de um deslocamento fictício, dado que não há deslocamento físico entre uma nota e outra. Contudo, na alteração da frequência entre uma nota e outra, nos deixamos fluir como imersos em um oceano de som.

Esses dois tipos de percepção tratam-se apenas de um esquema, não exatamente um estado da mente humana, observável fisicamente. O esquema ajuda a entender a percepção como um arco com polos distintos, dentro do qual nossa percepção vagueia, alternando o foco da consciência em questão de milésimos de segundos. O importante aqui é que o modelo ajuda a desvendar como a emoção experimentada num trecho musical surge da percepção de movimento.

A percepção “por dentro” da música é interessante para induzir o estado de “Flow”, conforme proposto por Mihaly Csikszentmihalyi. Quando entramos no estado de fluxo de consciência ótimo, uma série de elementos entram em ação e alteram nossa percepção cotidiana. Entre as mais comuns, perdemos a noção de tempo, esquecemos problemas e angústias, nos sentimentos altamente vívidos e ligados ao momento (o oposto ao tédio), temos uma alta perceptividade aos sinais (feedback) do ambiente e da ação em curso e as fronteiras do ego podem ficar borradas, chegando até mesmo a afrouxar nossa concepção do “eu”, dado que estamos “fundidos” com o que é ouvido, numa sensação “submersa” ou “oceânica”. E esse estado de pura contemplação da beleza sonora, pode ser uma fonte inesgotável de profundo prazer e alegria.


Parêntese da escritora Fran Lebowitz, em “Pretend It Is A City”: para ela, a música é uma fonte de prazer sem ser viciante ou prejudicial à saúde, como os psicotrópicos ou açúcares. 

 Já a percepção “à distância” da música nos instiga a observar a emoção sob a ótica do espaço e tempo. A vida da música espelha o cotidiano sem que haja nada para ver. Segundo Spitzer, a música pode imitar qualquer coisa, e “tem uma capacidade fantástica de expressar movimento e emoção: as lutas, aspirações, triunfos e tragédias das pessoas”. As trilhas de George Lattimore seguem a tradição das narrativas clássicas, em que sua quietude dá ao ouvinte o alívio abençoado da agonia do tempo, da temporalidade orientada a objetivos que é o tormento da consciência ocidental.

E aqui é revelada a segunda chave do novo álbum de Lattimore, o tempo. Nadando no mar atemporal de “Revolving Shores”, nos inclinamos a desaparecer. Absortos, experimentamos o som de forma mais visceral, rendidos a algo maior do que nós mesmos: o infinito, Deus, água e música.

Nesse intrincado fluxo temporal, a percepção presente é lida a partir do passado, o que molda a base da nossa ação futura. É por meio dessa alta capacidade de conectar o passado, presente e futuro, que as músicas de “Revolving Shores” funcionam como verdadeiros caminhos mentais para outros tempos e territórios. Podemos “viajar” para histórias que foram narradas no passado de Lattimore, revisitando inclusive seus familiares, como sua avó e irmão (retratados na arte do álbum), observando cenas de suas praias distantes de verões passados, pintadas com alto rigor técnico e cheias de luz. Ora solar, ora nebuloso, o elo entre as dez canções é o eletrônico. Cada uma das canções parte do eletrônico para caminhar numa rota diferente, permitindo ao ouvinte vislumbrar diferentes nuances de batidas e sintetizadores, permeados de vozes esparsas, vindas do outro lado do espelho.

O mapa sonoro de Grafitti Welfare, portanto, constitui-se como uma Highway entre passado e presente, uma conversa assíncrona entre dois cérebros que se comunicam em épocas diferentes, a verdadeira viagem em busca do tempo perdido. George Lattimore nos convida para a visão de que, se um mesmo destino pode ser visitado por diferentes pessoas, uma mesma emoção pode ser compartilhada. É nesse encontro que ocorre o diálogo, e se há conversa, há esperança de que o futuro pode ser transformado.

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O Álbum – Faixa a faixa

Volume
No vídeo de “Volume”, o single de estreia do álbum “Revolving Shores”, imagens do caos urbano se sobrepõe, fundindo-se e muitas vezes derretendo em novas cenas, delimitando o ponto de partida da viagem. Uma voz soa desde o início, o que pode ser entendido como a voz que dá recados no autofalante do aeroporto, dando boas-vindas e também comandos ao ouvinte cosmonauta. O baixo, pulsante, de harmonia mais aberta e flertando com frases de funk, conduz pela primeira paisagem sonora, o território próprio do terráqueo moderno, a cidade, vibrante, anárquica e caótica. Em meio a esse agitado terreno, a voz do narrador diz “leave the volume up”. Aumente o volume da música, se quiser se proteger do caos fora dos fones de ouvido.


To Be It

Primeira faixa do álbum. De atmosfera rarefeita, camadas de sintetizadores entram aos poucos, costurando uma trama sonora delicada, que vai aos poucos se espalhando no espectro estéreo. Lattimore não tem pressa, e seu convite vai na contramão nas diretrizes do pop da era das redes sociais, como “é necessário haver reviravoltas rítmicas nos primeiros 15 segundos, o refrão precisa chegar antes de 1 minuto, é preciso evocar um limitado tópico de dramas, especialmente traições, términos e começos de relacionamento”. Em vez do mantra ultramoderno da atenção a qualquer preço, a faixa é um convite a uma meditação calma e colorida, que aos poucos chega em seu clímax ensolarado. Não se espante se estiver sorrindo ao final. Eu estava.


Just Follow Vislumbre futurista de “Revolving Shores”, a canção de menos de dois minutos parece saída diretamente da ficção científica “Blade Runner”. Resgatando, inclusive, a melhor tradição de Vangelis ao compor a paisagem sonora do futuro. Acordes estendidos, sobrepostos por notas longas, que flutuam no ar, pontos luminosos cruzando os céus de uma cidade escura. A voz doce, repleta de delay e reverb, soa metálica, o som da apropriada aos sonhos elétricos de Philip K. Dick.


Just Follow

Vislumbre futurista de “Revolving Shores”, a canção de menos de dois minutos parece saída diretamente da ficção científica “Blade Runner”. Resgatando, inclusive, a melhor tradição de Vangelis ao compor a paisagem sonora do futuro. Acordes estendidos, sobrepostos por notas longas, que flutuam no ar, pontos luminosos cruzando os céus de uma cidade escura. A voz doce, repleta de delay e reverb, soa metálica, o som da apropriada aos sonhos elétricos de Philip K. Dick. 


Good News

De ritmo acelerado, melodias repetitivas e harmonia tensa, “Good News” pode ser lida como sátira ao atordoante fluxo de notícias tóxicas que emergem a cada manhã das páginas do noticiário. Bem entendidas, as notícias são amostras não aleatórias daquilo que mais vende jornal – casos de corrupção, acidentes de carro, mortes e aumento de preços. Em uma escalada da sensação de que estamos permanentemente em crise. No afã de tentarmos acompanhar incessantemente a História com “H” maiúsculo, passamos a viver numa era da inesgotabilidade do pior, na qual o poço não tem fundo. A boa notícia, é que basta não começar o dia se entupindo com notícias nocivas para que seu dia seja bom.


Echoes Of Our Sound

De atmosfera delicada, em contraposição ao caos urbano, George Lattimore parece encapsular em som a ternura entre um casal – aquilo que nos torna humanos. Momentos de aconchego com aqueles que estão ao nosso redor, na sala de casa. Afinal, somos feitos desses momentos que se passam na nossa história com “h” minúsculo, a trajetória privada de cada um de nós. É isso que nos dá sentido, são essas pessoas que fazem a vida valer a pena.


Synesthesia

De instrumentação rica, constituída de múltiplos ritmos, a faixa permite o vislumbre sonoro do que seria a sinestesia estética a partir da interação entre instrumentos (baixo, sintetizador, percussão. Nota para a guitarra de timbre que lembra “New Order”, provavelmente uma das raízes estéticas de Lattimore). A polifonia é o processo natural da interação entre diferentes interlocutores, e aqui conseguimos ouvir que o resultado final é maior do que a soma entre as partes.


Nothing Ever Changes

Eletropop conduzido por frases elegantes de guitarra, alterna batidas e loops hipnóticos. O que parece ser a trilha de uma exposição de arte moderna, ganha novo corpo após a entrada da voz, seguida de sintetizadores graves. Resta o registro consternado de que, o mundo ao nosso redor gira, os anos se acumulam sobre nossos ombros, mas tudo continua do jeito que sempre foi. Somos quem somos. Ondas se arrebentando na costa, constantemente. “E assim prosseguimos, barcos contra a corrente, arrastados incessantemente para o passado” – O Grande Gatsby, F. Scott Fitzgerald.


DejaBlue

Jogo de palavras esperto, contrapõe a tristeza inerente à vida urbana do conturbado início do século XXI. Ponto de partida e destino de bilhões de pessoas, pertencer à metrópole exige a convivência com repetidos momentos de frustração. Ao sair para ganhar a vida no começo do dia, alguém é exposto a toda sorte de aleatoriedades, algo violentas, como esmagar-se no vagão do metrô, ou passar horas nos engarrafamentos. Em meio à melancolia oriunda desse contato, nos defendemos como podemos. A música ainda é uma das melhores opções de encontrar beleza diante do asfalto.


Missing The War

Fotografia sonora de nosso tempo. 2022, ano que se inicia com a invasão da Ucrânia pela Rússia, é a data em que chegamos a era da eternidade. A nova classe de autocratas floresce na polarização da sociedade, fabricando crises e manipulando a sensação resultante. Submetem sua plateia ao regime do medo, vomitando sem parar a retórica do ódio e do ressentimento, reciclando os medos do passado como eternos algozes, afogando o futuro no presente, numa condenação permanente. Sua proposta de mundo não é o progresso, mas tomar precauções contra ameaças, na tentativa de proteger um passado glorioso, retocado com a platina de tenazes nacionalistas e reacionárias. Os vendedores da eternidade, afogados em memórias falsas pré-fabricadas, atuam no polo da boçalidade onisciente, colocando-se como detentores da única verdade. A boçalidade se expressa em dois vetores: na incompetência para entender a complexidade do mundo, dada sua preguiça inerente de estudar o mundo, e na atrocidade como comportamento legítimo, em que não há sombra de empatia ou exame de consciência ao submeter pessoas à aniquilação, ou o meio-ambiente à destruição.

Normalmente, os boçais são homens de um livro só, dado que a preguiça lhes pauta o entendimento do cotidiano. Homens de um livro só costumam se fiar nos sonhos de vidas eternas, na beatitude ou nos sofrimentos punitivos do além. E acreditam que é a transcendência (viver a eternidade no paraíso divino) que lhes permite uma rotina de crimes, pois encontrarão na morte o perdão de seus pecados em vida.


Seashell

Canção de encerramento do álbum, eletro que poderia ser tocada na pista de dança. Se o álbum fosse apresentado na íntegra (creio que seria uma grande experiência, eu me sentaria na primeira cadeira), essa poderia ser o fechamento do show, com um grande jogo de luzes no palco e na pista. Reverbera, por meio de seus arpegios hipnóticos, a sonoridade de movimento contínuo, em aceleração. Uma sonoridade de esperança. Homens e mulheres, vistos à distância, são animais se deslocando pelo mapa. O que fazemos, desde o começo, é andar. Sempre em frente, usando nossas bocas para cantar, nossos braços para bater em pedras e nossas pernas para dançar.


Eduardo Pastore é compositor e produtor musical brasiliense. Concluiu o Master Certificate de Songwriting and Guitar no Berklee Institute of Music, e lançou mais de 30 produções, que somam centenas de milhares de plays nas plataformas. Também é curador e escritor, tendo analisado e escrito reviews de cerca de 1000 músicas de artistas de todo o mundo.