Três artistas de cidades interioranas, Andrea dos Guimarães (voz), Daniel Muller (piano e acordeão) e João Paulo Amaral (viola caipira e voz), se juntaram há mais de duas décadas como trio Conversa Ribeira para cantar o Brasil profundo, a música caipira e a cultura e tradições do povo caipira. O trio se destaca por alguns bons motivos, e aqui citarei dois deles: (1) mesclar a música caipira aos outros gêneros e movimentos musicais como a MPB e (2) garimpar canções sertanejas das mais valiosas, das populares às menos conhecidas.
Embora já ativos nos palcos, o trio Conversa Ribeira fez sua estreia fonográfica apenas em 2007. Nele, já demonstra o valor da pesquisa ao longo de treze faixas, que incluem canções clássicas como “Pingo D’Água” (João Pacifico / Raul Torres), “Um Violeiro Toca” (Almir Sater / Renato Teixeira) e “Rei do Gado” (Teddy Vieira). Depois, o grupo lançou dois álbuns (“Águas Memórias” e “Do Verbo Chão”) e mais três singles. As gravações mais escutadas no Spotify são “Promessa de Violeiro” (Celino / Raul Torres), “Atrás Poeira” (Ivan Lins / Vitor Martins), “Folia” (Chico Xaves / Lourenço Baeta), “Coração de Violeiro” (Delamare de Abreu / Murilo Alvarengae) e “Amanheceu” (Renato Teixeira).
O Conversa Ribeira é, sem dúvidas, incomum no mercado musical. É esta irreverência e riqueza de conteúdo que nos instigou a entrevista-los. A seguir, você terá acesso a uma entrevista com informações preciosas e boas reflexões. Eu, Matheus Luzi (editor) tive o prazer de conversar com os três integrantes. Confira!
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Matheus Luzi – O que podemos dizer que é o Conversa Ribeira? Digo, uma curta apresentação para iniciarmos nossa conversa. É o momento de “vender o peixe”, risos.
Andrea dos Guimarães (vocal) – O Conversa Ribeira é um trio formado há 20 anos por Andrea dos Guimarães na voz, Daniel Muller no piano e acordeão e João Paulo Amaral na viola caipira e voz que realiza uma entusiasmada pesquisa buscando trazer à superfície pérolas da música caipira e de outros compositores brasileiros que se relacionam com o universo do Brasil profundo. No entanto, nossa proposta vai além de resgatar e reproduzir esse repertório na sua forma original, pois buscamos recriá-lo à nossa maneira.
Matheus Luzi – Por que o Conversa Ribeira existe? Como esta história começou e se desenrolou ao longo do tempo?
Andrea dos Guimarães (vocal) e Daniel Muller (piano/acordeão) – Primeiramente, o Conversa Ribeira existe por causa da vontade e alegria de tocarmos juntos. Nos encontramos no curso de Música Popular da Unicamp e vimos em nossas raízes interioranas uma maneira de reverenciarmos a cultura caipira, o campo, a tradição e revisitarmos nossas memórias afetivas. Importante dizer que, pra gente, a admiração que sustentamos pelos autores tradicionais e suas obras se associa com a vontade de recriar o repertório sob uma perspectiva que seja muito pessoal e verdadeira. Então, realizamos arranjos em que nos permitimos usar elementos musicais que provém de outros universos a que também nos dedicamos enquanto musicistas: a MPB, a música instrumental, a música clássica. Do surgimento em 2002 até os dias atuais, gravamos três álbuns, recebemos alguns prêmios, participamos de festivais no país e exterior, nos apresentamos com as Orquestras Municipais de Jundiaí e Sorocaba, e também ao lado de outros artistas que admiramos como Mônica Salmaso, Renato Teixeira, Guinga, Paulo Freire e Inezita Barroso.
Matheus Luzi – É nítido que vocês são influenciados por diversos artistas e, inclusive, gêneros musicais. No entanto, ouso em pedir que citem os álbuns e artistas que mais fizeram sentido e influência na história do Trio.
Andrea dos Guimarães (vocal) – Há vários álbuns que influenciaram individualmente a formação musical de cada um de nós. Pra citar alguns, O Daniel lembrou do “Renato Teixeira & Pena Branca e Xavantinho Ao vivo em Tatuí”, do “Urubu”, do Tom Jobim e do “Clube da Esquina 2” do Milton Nascimento. Tem também o “Caipira” do Rolando Boldrin. Alguns artistas em comum são Milton Nascimento, Ivan Lins, Tom Jobim, Edu Lobo, Rolando Boldrin, Almir Sater, Renato Teixeira, Tião Carreiro e Pardinho, Inezita Barroso, João Pacífico, Tonico e Tinoco, Pena Branca e Xavantinho.
Matheus Luzi – Aqui, peço comentários sobre a discografia do Trio. Acho um bom espaço para enfatizar algum deles, tornando, então, um primeiro atalho para o público conhecer suas músicas/gravações.
Daniel Muller (piano e acordeão) – O nosso primeiro álbum, “Conversa Ribeira”, foi lançado em 2008, e condensa os arranjos que fizemos coletivamente ao longo dos primeiros anos do grupo, em que ensaiamos muito e íamos descobrindo o nosso estilo. “Águas Memórias”, de 2012, registra uma maturidade maior e algumas composições nossas. “Do Verbo Chão”, de 2019, é nosso último álbum. Lançamos imediatamente antes de começar a pandemia, tínhamos vários shows de lançamento marcados pelo interior paulista, que foram, infelizmente, cancelados. Foi uma pena não circular com ele. Mas pudemos produzir três videoclipes que gostamos muito com o repertório deste álbum: “Folia”, “Olho d’água” e “Herói sem medalha”. Estão disponíveis nas nossas redes pra quem quiser conhecer. Procurem no nosso canal no youtube!
Matheus Luzi – Para vocês, qual ideia define o que vem a ser a “música caipira”, e como este gênero/movimento é expressado por vocês? Ou seja, como a música caipira soa enquanto Trio Conversa Ribeira?
João Paulo Amaral (viola caipira e vocal) – Poderíamos dizer que o que atualmente consideramos como “música caipira” é o gênero musical que foi se definindo ao longo do século XX por meio do trabalho das chamadas duplas caipiras e compositores que por sua vez se utilizaram das matrizes caipiras originárias, elementos ligados à cultura caipira que se desenvolveu ao longo dos séculos anteriores nos bairros rurais do centro-sul do Brasil (Estados de São Paulo, Minas Gerais, norte do Paraná, Goiás, etc). Essas matrizes musicais populares, herdeiras da miscigenação das culturas portuguesa (responsável, entre outras, pela inserção no país da viola de 10 cordas, a viola caipira), indígena e posteriormente africana, constituíam funções e práticas religiosas ou profanas dos sitiantes, os caipiras. Eram identificadas em folguedos, danças, cantos de trabalho, gêneros e ritmos como cururu, cateretê, moda de viola, folia de reis e do divino, dança de são gonçalo, dança de santa cruz, cana verde, entre outros. Assim, ao longo do século XX, essa música que antes era sempre ligada a essas práticas coletivas rurais, a partir das primeiras gravações, foi se desvinculando da sua função e ambiente originários e migrando para os centros urbanos, para o rádio, apresentações, etc, se constituindo no segmento fonográfico batizado de sertanejo. Esse segmento, protagonizado principalmente por duplas sertanejas/caipiras, ao longo dos anos, de forma viva, manteve, em diferentes medidas, vínculos com essas matrizes caipiras originárias, de forma que a linguagem, temática, estética e instrumentação da música caipira que já era diversa, respirou e absorveu ainda mais elementos e influências. Acreditamos que o Conversa Ribeira, assim como outros artistas e grupos que nos precederam, tem uma visão de que a música caipira, assim como outras músicas que trabalham com matrizes tradicionais, não precisa ser rígida, estanque, ao contrário, pode experimentar novas ideias musicais a partir de um cuidado e pesquisa reverente a essas tradições. Acreditamos que à nossa maneira, podemos somar junto a outros artistas e trabalhos dos mais tradicionais aos mais experimentais, dar continuidade a esse segmento musical tão rico e diverso.
Achamos exagerado dizer que a música caipira se perdeu completamente. Acreditamos que há bastante diversidade acontecendo na música caipira/sertaneja contemporânea, ainda que boa parte dela ocupando espaços mais discretos.
Daniel Muller (piano e acordeão)
Matheus Luzi – É um assunto delicado e difícil de se falar, eu sei, no entanto, creio que nesta entrevista é fundamental: como vocês avaliam o cenário atual da música caipira (ou música sertaneja)? É uma ignorância dizer que a música caipira se perdeu completamente?
Daniel Muller (piano e acordeão) – Achamos exagerado dizer que a música caipira se perdeu completamente. Acreditamos que há bastante diversidade acontecendo na música caipira/sertaneja contemporânea, ainda que boa parte dela ocupando espaços mais discretos. Se, por um lado, podemos dizer por exemplo, que há um interesse renovado na viola caipira, com muitos jovens escolhendo se aprofundar neste instrumento tão essencial ao gênero, e propondo novas perspectivas pra ele, podemos dizer também que os artistas mais ligados à indústria fonográfica (e, vale dizer, o segmento sertanejo segue muitíssimo importante para esta indústria, concentrando boa parte dos lançamentos mais ouvidos e que movimentam mais dinheiro no mercado musical do país) costumam sustentar poucos elementos oriundos das matrizes caipiras – o canto em dueto sendo talvez o atributo que mais persevera. Os artistas sertanejos mais tocados, ainda que vez ou outra incluam no repertório uma canção caipira “clássica”, tendem a orientar sua produção para a produção de “hits” e esse processo parece ser quase sempre acompanhado de hibridizações com outros estilos musicais que estão fazendo sucesso no momento. Se, por um lado, essas hibridizações acabam diluindo as singularidades da música que surgiu nessa região, por outro, é preciso reconhecer que hibridizar e transformar é um processo cultural natural, inevitável, em qualquer gênero que se mantém popular, vivo, pulsante. Entretanto, avalio que é muito importante que continuem existindo, sempre, aqueles que amam a música produzida pelas gerações anteriores, que se dispõem a conhecê-la profundamente, em detalhes, e se esforçam em recolocar em circulação, ainda que sob nova perspectiva, aquelas músicas, aqueles afetos, aquela sensibilidade, aquelas sabedorias que tenderiam, na sociedade capitalista em rápida transformação em que vivemos, a desaparecer ou seguir existindo apenas enquanto vestígios.
Matheus Luzi – Peguemos a resposta anterior como um gatilho para esta. Como vocês são recebidos em seus shows? Onde estes shows acontecem?
Andrea dos Guimarães (vocal) e Daniel Muller (piano e acordeão) – Somos sempre muito bem recebidos. As pessoas se emocionam, muitos nos procuram pra conversar no final, agradecem. Já fizemos shows em lugares variados, teatros, auditórios, centros culturais – com um limite mais restrito de público. Mas também em praças, ao ar livre, em festivais com um grande número de espectadores. E percebemos sempre a presença de gente muito tocada com o que apresentamos. O repertório que escolhemos é aquele que nos emociona, que nos surpreende. Procuramos sempre incorporar uma diversidade grande nos repertórios das apresentações, contemplando ao mesmo tempo a riqueza de gêneros que compõem o universo musical caipira (moda de viola, cururu, cateretê, folia, pagode de viola, toada, guarânia…) e a riqueza de temáticas de que tratam as canções (amor, humor, lirismo, narrativas que tratam da vida do caipira, da relação dele com a natureza e com os bichos, questões sociais, etc). Balanceamos canções conhecidas e canções desconhecidas. As apresentações são sempre oportunidades para compartilhar essa admiração orgulhosa e esse amor que sentimos pela gente que fez germinar essa cultura e, ao mesmo tempo, nosso desejo de fazer parte dela. E sempre sentimos que essa nossa admiração, esse nosso amor, esse nosso desejo ressoa entre as pessoas que lá estão.
Matheus Luzi – Por fim, deixo este espaço livre para vocês comentarem o que quiserem e que, por ventura e falta de espaço, acabei não perguntando.
Trio Conversa Ribeira – Agradecemos imensamente pela oportunidade de falarmos sobre o nosso trabalho e sobre uma parte da cultura e tradição brasileiras. Esperamos que a música caipira raiz continue sendo reverenciada, revisitada e respeitada pelas próximas gerações e que essa cultura tenha cada vez mais o livre acesso aos mais diversos espaços culturais, festivais e meios de divulgação.
Acreditamos que o Conversa Ribeira, assim como outros artistas e grupos que nos precederam, tem uma visão de que a música caipira, assim como outras músicas que trabalham com matrizes tradicionais, não precisa ser rígida, estanque, ao contrário, pode experimentar novas ideias musicais a partir de um cuidado e pesquisa reverente a essas tradições.
João Paulo Amaral (viola caipira e vocal)
Crédito da foto de capa: Conversa Ribeira por Omar Paixão (Divulgação)