nossa escuta musical é culturalmente direcionada para a canção, visto que a voz é o nosso instrumento intrínseco, uma das formas mais naturais e primitivas de comunicação do ser-humano. Mas paira sobre nós, para além disso, uma urgência do código falado, uma necessidade de traduzir em palavras os nossos sentimentos, mesmo que, paradoxalmente, isso aconteça num idioma que não compreendemos. É, no mínimo, curioso o fato de consumirmos muito mais música cantada em inglês do que o próprio instrumental brasileiro. De alguma forma, a palavra faz companhia, como quando chegamos em casa, ligamos a TV e a deixamos falar, enquanto fazemos outras coisas. Não importa a programação a ideia é ficarmos menos sozinhos.
A música sem letra naturalmente evoca a nossa subjetividade. Um contato com camadas mais íntimas do nosso sentir, para as quais nem sempre estamos preparados. Mas essas barreiras que se impõe porque pouco nos oferecem oportunidades de quebrá-las, parecem menos intransponíveis quando o violonista Paulinho Nogueira e o bandolinista Hamilton de Holanda cantam com seus instrumentos a obra de Chico Buarque.
DO CAIS PARA O MAR ABERTO
Há gerações vem sendo concedido à obra de Chico Buarque o posto de “clássica”. São tantas as canções de sua autoria que fizeram e fazem parte da nossa história, que ouvi-las, nas gravações do próprio compositor ou revisitadas, é uma ideia, por si só, entusiasmante. Faz tempo que instrumentistas que se dedicaram a gêneros musicais como o jazz e o choro, em que predomina a prática instrumental, flertam com a canção. Se apropriam das melodias e buscam torná-las autossuficientes, imbuindo as notas do sentido da poesia original ou construindo um caminho para novas abordagens. Exemplo disso é o Jacob do Bandolim: chorão e pesquisador, gravou em 1963 o LP “Jacob Revisita Sambas para Você Cantar”.
Paulinho Nogueira, natural de Campinas, escolhe as primeiras composições de Chico para seu álbum gravado em 2002, celebrando seus 50 anos de carreira e o brasiliense Hamilton de Holanda, assina Samba de Chico em 2016. As diferentes direções que os intérpretes escolhem contam de seu tempo e suas vivências, de seu olhar particular. Mas ambas apontam para a possibilidade do encontro do ouvinte não-iniciado com a música instrumental, prestando um serviço importante à esta cultura que se tornou elitizada com o passar dos anos.
SIMPLES SEM SER SIMPLÓRIO
Paulinho Nogueira, que nasceu em 1927, levava a vida como desenhista até resolver se dedicar à música como autodidata. Violonista, compositor e professor, Paulinho foi o primeiro mestre de Toquinho. Aliás, a primeira vez que ouvi falar dele, foi no título da composição “Choro Chorado para Paulinho Nogueira”, de Toquinho, Vinícius de Moraes e Paulinho Nogueira. Esse choro, de uma simplicidade quase didática, captura a anima do Paulinho, que está em cada arranjo que o violonista elaborou para o seu “Chico Buarque – Primeiras Composições”, lançado no ano anterior ao seu falecimento. Neste registro, o violão é o protagonista.
A abertura com “Carolina” dita o tom do repertório, com um jeito de tocar o pinho que faz lembrar a escola de Dilermando Reis e João Pernambuco, uma brasilidade que equilibra e executa ao mesmo tempo a melodia e o acompanhamento. Mas o violão não fica só o tempo todo. Eis que visitando títulos como “João e Maria” e “Com Açúcar, Com Afeto”, ele encontra a flauta de Teco Cardoso em “Joana Francesa” e “Olhos nos Olhos” e a percussão de João Parahyba em “A Banda”, “Quem Te Viu, Quem Te Vê” e “Noite dos Mascarados”, que encerra o álbum. O violão de Paulinho é como aquela pessoa familiar, que quando a gente conhece, parece que já faz parte da nossa vida há muito tempo.
O SAMBA NEGRO
o premiado bandolinista e compositor Hamilton de Holanda, nascido em 1976, é um dos poucos instrumentistas da sua geração que conseguiu furar a bolha da música instrumental – um reduto em que músicos, muitas vezes, acabam tocando para outros músicos. Um ciclo que nós precisamos interromper e que, ao meu ver, está para além da música que fazemos. Tem a ver com como a fazemos e como criamos estratégias para democratizar o acesso a ela dentro do mercado. Tocar o “Samba de Chico” e evocar a negritude da nossa essência foi um dos caminhos que Hamilton propôs. De cara, me chamam atenção a elegância da cozinha – como costumamos chamar os instrumentos da base – pilotada por Thiago da Serrinha na percussão e Guto Wirtti no contrabaixo e como, conduzidos pelo bandolim, os músicos exploram a rítmica da música popular brasileira que, além de um convite aos ouvidos, é também um convite aos quadris. Quando bate na gente e faz balançar, fica difícil resistir.
Abrindo com “Morena de Angola”, o álbum passeia canções consagradas como “A Rita”, “Samba do Grande Amor” e deixa espaço também para a autoral de Hamilton que é faixa-título. O disco todo tem um espírito de jam session, em que os músicos exploram as composições como roteiros e criam livremente sobre elas. O incrível pianista Stefano Bollani se junta ao grupo em algumas faixas, bem como a cantora catalã Silvia Perez Cruz e também o próprio compositor, Chico Buarque, dando voz a “A Volta do Malandro” e “Vai Trabalhar Vagabundo”. Estas aparições dos cantores tornam a escuta ainda mais palatável para quem não tem o hábito de ouvir música instrumental.
DUAS IMPRESSÕES SOBRE CHICO
no desafio de reinterpretar um clássico, que reside de maneira tão sólida no nosso inconsciente, é impossível lograr êxito se deixarmos de lado o que nos significa enquanto artistas: nosso tempo, nosso espaço, nossas vivências. É bonito ver como, tanto Paulinho quanto Hamilton abraçam suas verdades e nos oferecem bons minutos de apreciação musical. Enquanto Nogueira nos reconecta ao quintal de casa, às tardes na varanda, ao café que acabou de ficar pronto servido em caneca de esmalte, daquelas que têm alguma falha na pintura e deixam ver o metal escuro por baixo, de Holanda pinta uma paisagem mais urbana e contemporânea, mas que, nem por isso, esquece das nossas raízes, como quando mistura tambores ao som da marcação das palmas. Paulinho traz pro centro da cena o violão, instrumento que tem perdido por aí em muitas casas, mesmo que ninguém o toque. Hamilton, com um bandolim de dez cordas, que muita gente – ouvindo ou vendo – vai ficar se perguntando o que é ou se não é um cavaquinho, explora diferentes possibilidades como no encerramento do álbum com a faixa “A Banda”, também interpretada por Paulinho Nogueira. Este soma ao seu instrumento uma percussão marcial, que faz a gente querer por a cabeça pra fora da janela para ver a procissão de músicos marchando. Já aquele, toca sozinho, usando o bandolim de várias maneiras: hora executando a melodia, hora tocando os acordes, hora batucando no corpo do instrumento.
Tecendo tramas tão ricas quanto diversas, ambos os intérpretes nos lembram as canções de Chico que nos marcaram, que quase todo mundo sabe cantar um trecho. Olhares sobre uma brasilidade da qual, sem querer, às vezes nos perdemos. “Chico Buarque – Primeiras Canções” e “Samba de Chico” nos levam a uma viagem para dentro: dá pra rir, sentir saudade, chacoalhar as cadeiras, ao som de notas que podem valer mais que mil palavras.
RESENHA ASSINADA POR CAETANO BRASIL
clarinetista, saxofonista e compositor indicado ao Grammy Latino 2020.