Artigo escrito por Svetlana Bakushina com exclusividade para Arte Brasileira
Portugal, agosto de 2024
Nasci e cresci na Sibéria, onde a minha formação musical clássica como pianista foi o centro da minha juventude. Naquele ambiente remoto, meu conhecimento sobre as culturas brasileira e portuguesa era limitado, exceto pela banda brasileira Sepultura, da qual sou um grande fã até hoje. Mais tarde, a capoeira entrou na minha vida como uma disciplina no meu clube de fitness, e o treinador contava: “um-dois-três-jinga!” Quanto ao samba e à bossa nova, a minha única janela para esses mundos distantes foi uma telenovela chamada “A Escrava Isaura”, transmitida na União Soviética.
Influência Musical entre Portugal e Brasil
Foi apenas quando me estabeleci em Portugal em 2011, que comecei verdadeiramente a explorar e a interessar-me pela riqueza musical portuguesa e brasileira, descobrindo as suas raízes profundas e entrelaçadas. Esta jornada de descoberta levou-me para um universo musical que, até então, me era completamente desconhecido.
À medida que me aprofundava neste mundo, tornava-se cada vez mais evidente que as trocas musicais entre Portugal e Brasil, por exemplo, eram parte de um diálogo cultural contínuo e multifacetado. Este intercâmbio não se limitava apenas a estes dois países, mas estendia-se a outras nações lusófonas, criando uma teia intrincada de influências mútuas. Cada país não só absorvia elementos externos, mas também os interpretava, adicionando as suas próprias nuances culturais, e devolvia-os transformados, num ciclo constante de renovação e reinvenção musical.
Evolução do Samba e Carnaval
Consideremos, por exemplo, a evolução do samba e do carnaval. Começando com as raízes medievais do carnaval português, onde tradições pagãs e cristãs se entrelaçaram. Essas celebrações atravessaram o Atlântico, fundindo-se com elementos africanos no Brasil. Desta mistura nasceu o lundu, incorporando instrumentos e sons portugueses e africanos. O samba emergiu posteriormente como herdeiro desta fusão cultural. Num fascinante ciclo de influências, o samba retornou a Portugal, inspirando a criação de escolas de samba e reinventando o carnaval português com um toque brasileiro.
Impacto da Bossa Nova, MPB e Influência do Tropicalismo
Nos anos 60 e 70, a Bossa Nova e a MPB chegaram a Portugal como uma onda de modernidade e sofisticação. Artistas como João Gilberto, Vinícius de Moraes e Tom Jobim tornaram-se referências para músicos portugueses. Este movimento influenciou profundamente artistas como José Afonso, Sérgio Godinho e Fausto, que incorporaram elementos da música brasileira em suas composições, mesclando-os com tradições portuguesas. A MPB, com sua poesia elaborada e engajamento político, ressoou fortemente durante os últimos anos do Estado Novo e no período pós-Revolução dos Cravos em 1974.
O movimento tropicalista brasileiro dos anos 60, liderado por artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Os Mutantes, teve um impacto significativo na cena musical portuguesa. Sua abordagem experimental, misturando elementos da cultura pop internacional com tradições
brasileiras, inspirou uma nova geração de músicos portugueses. Artistas como António Variações, por exemplo, incorporaram a estética e a atitude do Tropicalismo em seu trabalho, mesclando o fado tradicional com rock e pop. Este movimento encorajou os músicos portugueses a repensar suas próprias tradições e a experimentar com novos sons e estilos, contribuindo para uma renovação da música portuguesa nas décadas de 70 e 80.
Migração Musical e Influências Cruzadas
Ainda antes, nos anos 30 e 40, muitos artistas brasileiros se estabeleceram em Portugal, fugindo do Estado Novo de Getúlio Vargas. Estes artistas trouxeram consigo novos ritmos e estilos. Nas décadas de 60 e 70, durante a ditadura militar no Brasil, vários músicos brasileiros exilaram-se em Portugal, especialmente após a Revolução dos Cravos em 1974. Nos anos 80 e 90, houve um aumento na migração de portugueses para o Brasil, levando a um renovado interesse pela cultura brasileira em Portugal. E, nas últimas décadas, houve um aumento na migração de brasileiros para Portugal, evoluindo a fusão musical uma vez mais.
Composição “Sobrevoo”
A minha própria composição “Sobrevoo” exemplifica esta fusão. Originalmente composta ao piano em estilo neoclássico, foi posteriormente versionada em bossa-nova/jazz brasileiro. Este projeto reúne uma compositora siberiana, um produtor português, uma cantora brasileira e um
guitarrista de jazz espanhol, criando uma obra que devolve ao Brasil um som familiar, mas com um toque europeu. Esta colaboração multicultural ilustra a contínua evolução e entrelaçamento das tradições musicais lusófonas e além.
Estreia da Ópera Sóror Mariana
Foi um momento especial e carregado de emoção quando assisti à estreia da ópera Sóror Mariana no Teatro TEMPO em Portimão, Portugal, no dia 28 de julho. A produção, sob a direção musical do maestro Antonio Alves Pereira e do pianista Jeferson de Mello, trouxe ao palco a impressionante performance da cantora brasileira Michele Tomaz, uma amiga querida e uma artista de grande talento, no papel principal. Vale dizer que a ópera foi restaurada e teve como diretor cênico Gehad Hajar.
Além disso, Michele Tomaz é também cantora no meu próprio projeto musical, o Svetlana Bakushina Fusion project, que se dedica a interpretar músicas originais baseadas em folclores de diferentes culturas, mescladas ao estilo jazz fusion.
A ópera, composta por Júlio Reis, foi apresentada em português europeu, ao contrário da versão brasileira, que usa o português do Brasil.
A trajetória de Sóror Mariana é uma fascinante interseção entre culturas. Composta em 1920 por Júlio Reis, um renomado compositor brasileiro nascido em Niterói em 1863, a ópera se baseia nas cartas apaixonadas de Mariana Alcoforado, uma freira portuguesa do século XVII,
do Convento de Nossa Senhora Conceição de Beja. Júlio Dantas escreveu a peça de teatro Soror Mariana, que mais tarde vem ao libreto da ópera. Essas cartas, publicadas como “Lettres portugaises”, revelam uma história de amor proibido entre Mariana e um oficial francês, trazendo à tona o drama e a intensidade do sentimento humano.
O significado cultural dessa estreia europeia é profundo. A obra de Reis não só exemplifica o intercâmbio entre tradições musicais europeias e brasileiras, mas também destaca o crescente reconhecimento da música brasileira no cenário global. A apresentação em Portimão marca a
primeira vez que a ópera é montada na Europa, após quase um século de sua composição, mostrando como a música pode transcender fronteiras e unir culturas. Estar presente nesse evento foi um privilégio e um testemunho da rica tapeçaria cultural que liga Portugal e Brasil.
Festival de Música da Câmara “VilaNova” de Monchique
Como fundadora e diretora artística do Festival de Música da Câmara “Vilanova”, realizado em Monchique, Portugal, com o apoio da Junta de Freguesia e a presidência de José Gonçalo Duarte Silva, tenho o prazer de anunciar a terceira edição do festival. O evento se firmou como
um importante ponto de encontro para a música de câmara e suas influências culturais. Na primeira edição, apresentei um concerto de cravo na histórica Igreja de Nossa Senhora do Pé da Cruz, cuja denominação remete à Pietá — a imagem de Nossa Senhora com o corpo de
Cristo após a crucificação. O programa incluiu “Zangou-se Cravo com a Rosa” de Heitor Villa-Lobos, uma peça que faz um jogo de palavras entre a flor e o instrumento musical, celebrando a herança cultural brasileira e o contexto histórico local.
A Igreja de Nossa Senhora do Pé da Cruz, construída em 1682 com doações de moradores e sob a orientação de Afonso Anes, é um importante marco histórico em Monchique. O nome “Pé da Cruz” refere-se à “Vera Cruz” ou “verdadeira cruz”, encontrada por Santa Helena e levada
para Roma. Fragmentos dessa cruz foram distribuídos por igrejas em todo o mundo. Até recentemente, o dia 3 de maio era celebrado em Monchique com a Festa da Vera Cruz, que incluía música e celebrações comunitárias, refletindo a conexão entre a história local e o legado
das navegações portuguesas, já que o Brasil foi descoberto nesse mesmo dia.
A Complexidade da Influência Musical entre Países
Falar de influência musical de um país noutro é, na verdade, um tema bem mais complexo do que pode parecer à primeira vista. Não se trata de uma mera transmissão unidirecional de estilos ou ritmos, mas sim de uma sinergia multilateral que se desenvolve ao longo do tempo.