14 de julho de 2025

Iaponi: a invenção de uma permanente festa de existir

As formar bruscas, a cada brusco movimento, inauguram belas imagens insólitas.

Henriqueta Lisboa

 

1.

 

Iaponi (São Vicente, 1942-1994), assim como seu irmão Iaperi (21.07.1945), encaminha seus trabalhos, no campo das artes visuais, a uma linha de continuidade cuja fundação involuntária e anômala é de um interesse que somente aqueles que lidam com a Teoria do Imaginário e o Mundo das Ideias de Platão podem oferecer. No seu círculo teórico, aparecem ferramentas com o intuito de perscrutar elementos à cata de trazer uma explicação fúlgida, com brilho crítico da intuição e do que as ciências humanas podem oferecer aos viandantes, aos que amam a arte. Nesse sentido, podem-se realizar tratativas com categorias analíticas ou ferramentas advindas de uma transdisciplinaridade.
Podemos começar por estabelecer relações entre Iaponi e um dos nossos grandes pintores da tradição naïf, Heitor dos prazeres. Basta reparar um só elemento presente em ambos: os personagens estão sempre em movimento, dançando um bailado que muito se parece pelo gestual das pernas e dos braços, como se fora uma tessitura de loas a um presente que se quer dádiva e galardão, outorgando um olvido ao cotidiano e suas vicissitudes. Parece um universo doméstico desprovido de atribulações.

2.
Heitor dos Prazeres, como pintor, antecede toda a tradição de naïfs que foi se impondo aos poucos no Brasil. Tendo vivido no início do século XX, foi pioneiro na composição de sambas, não só isso, também foi responsável pela criação de escolas de samba.

Já em Iaponi podemos buscar determinados traços de sua pintura na antiga arte egípcia, pelo fato de retratar as figuras sempre de perfil. Desse jeito, Iaponi aproxima seu parentesco, com algo bem peculiar: o fato de tudo ser motivo de uma permanente alegria.

Ao que parece, a festa requer uma desculpa, um pretexto, para que se efetive como um fenômeno da cultura e uma busca de catarse. Nas telas de Iaponi, mesmo minguando de gente, o artista não deixa de transparecer o bailado como espécie de proposta de outra forma de acompanhar o ritmo da vida. Os casarões ao fundo erguem-se hieráticos, como se quisessem emoldurar e enfatizar os personagens que dançam nas praças, como os pastoris, por exemplo. Deles, os rostos são escondidos, embaçados, pois o que está em evidência são as indumentárias em azul e vermelho, dispostas nas praças ou nos adros de igrejas.

3.
O Carpe diem oferta-se por meio de danças integrantes da nossa tradição, fazendo-nos seres mais leves e plenos de pertencimento à comunidade ou à vizinhança. O certo é que se integrar faz saber de uma arte na qual há um somatório de seres com suas cadências, separando ritmos, ousando justapor ao tempo algo distinto da realidade, que, como todos sabemos, emana do nosso mais íntimo, com o papel de proclamar, ao dizer que a vida vigora cheia de hiatos.
Acontece que muitos exageram nesse aproveitar os dias como se o mundo fosse acabar amanhã. Os gregos nominavam esse desregramento dos sentidos como hybris, antípoda do bom senso e do necessário controle higiênico do corpo. Aquele que cometesse hybris, inexoravelmente, seria punido, como sucedera com Édipo, que, por engano, matou seu pai Laio e casou com sua mãe Jocasta (Sófocles). Édipo fica cego ao descobrir que matou seu pai, furando seus olhos em uma autopunição.
No quesito desregramento, o Brasil talvez seja o país com mais quantidade de comemorações. O calendário religioso e profano assemelha-se a uma brincadeira no pior sentido. Uma festa em homenagem a um santo dura bem mais que 30 dias. O carnaval, em alguns lugares, começa 15 dias antes e termina 15 dias depois. Há de se inquirir acerca de almas repletas de tanta alegria e dança. A violência impera com sua espada amolada. Quem se importa com isso? Vale o hoje. E se amanhã não há dinheiro para o básico alimento, podemos nos virar.

Uma festa casmurra e sem sorrisos. Algumas micaretas assemelham-se mais a cortejos/enterros. Trios elétricos passam em alto som. No centro das arquibancadas, as pessoas passam andando, com cerveja na mão. Onde a festa está dormindo que não veio participar?

4.

Vejamos a dicção estética do artista, sempre a colocar como plano de fundo fachadas e frontões neobarrocos, platibandas com volutas, dando pouca valia ao desenho, pois a cor, com suas pinceladas em contínuo movimento, suplanta e ecoa sobre as linhas curvas, ornamentando as portas e janelas de algumas igrejas com uma beleza ímpar. É o lugar no qual se apresentam suas figuras ladeando praças, tendo casarões coloniais com sua requintada azulejaria portuguesa. Para além de uma ornamentação, a pintura parece querer preservar nosso patrimônio histórico, misto de obra de arte e resguardo do que fora nós, remetendo à posteridade um chamado para o que nos faz edificar o presente, no sentido de contemplar a arte não como ornamento, mas, sim, como forma de conhecimento, de aceder ao real, além de fuga do espírito quando este não se aquieta e vive em paz com o chamado real concreto.
Uma tela se destaca de uma plêiade de retratos com pessoas em movimento. É uma louceira de vestido vermelho diante da porta de uma igreja. Podemos riscar um triângulo retângulo com um ângulo de 90° no extremo do lado, permitindo que a mulher, com sua sombrinha azul, hirta sobre a calçada, quando em um silêncio que nada resguarda de enigmático, apenas aguarda hirsuta um eventual cliente de sua louça de barro decorada com flores e arabescos, como preservando uma tradição nossa, bem presente no artista Carlos José (creio que todos se lembram dele).

5.

Digno de nota, para efeito de análise e interpretação, trata-se de uma tela bastante diferente das demais. Cremos que é a opus magnum das tantas séries que compõem sua obra. É uma procissão de atávico contemplar, arrastando-se pelas ruas, refratadora do que já discorremos como o horror vacui, na sua maneira de organizar os elementos das tantas telas.

Tenho, para mim, que esse quadro chancela a inolvidável capacidade do artista de ser considerado como um dos nossos naïfs primevos, quando os rebentos da nossa seara de primitivos pulsavam, buscando tomar forma: prestes. Não que ele tivesse fundado essa escola, mas se dava em observação, como ocorreu com os acadêmicos tardios feito Moura Rabello e seu opulento domínio na retratação de pessoas.

Ora, ao compor um cortejo de acordo com a cadência do que fora rito eivado de uma espécie de crença ancestral invocadora dos oragos cultuados em cada paróquia, ele nos mostra a dinâmica de uma polis ritualizando hierarquias das classes sociais e daqueles ocupantes de lugares no imenso xadrez do grande e complexo teatro do mundo, no seu cotidiano profano transmudado em desfile.

Podemos inferir, que ele como que remete ao calendário religioso, com um contorno de anjos azuis e rosa, tendo no interior desse círculo um naipe de andores de santos vários, seguido por uma banda de música, um padre e mulheres de mantilhas. O pintor se permite uma licença poética, acrescentando elementos de natureza profana, abrindo, com seus atributos nas mãos, a marcha solene de clérigos portando em andores imagens veneráveis.

Ao que parece, deseja insculpir no séquito as marcas dos que compõem esse distrito no qual habitam o sagrado e o profano. Desse modo, o laborar artístico, ao erguer outra realidade, haja vista não estar preenchido ou contente com esse empírico nos circundando e nos assinalando questões nem sempre com respostas, lança-nos para uma solidão individual ou uma errância coletiva, causando dramas e dores.

Também há de se relembrar um dos principais traços para onde se lança uma característica de Iaponi: o movimento, este que implica refletir acerca da vera vida, da importância de se mudar fisicamente caso não esteja contente ou de repensar maneiras de agir, reagir, em busca de, por meio de questionamentos, lançar-se na abertura de novos e diferentes ciclos.

A procissão confirma uma síntese de mescla vária, como se fosse um espelho de um roçado no qual convivem flores silvestres e ervas daninhas, demonstrando o verso e o reverso do humano como uma espécie eivada de idiossincrasias.

6.

Por fim, a festa não é concebida com uma pausa, uma vírgula, na qual há o exultar e o júbilo a consagrarem a existência como eterna celebração. Bem claro que somente no domínio da arte possa haver essa suspensão do tempo e do espaço, na medida em que a vida é muito mais do que uma senhora parcimoniosa que nos libera o cotidiano com seu desassossego e suas intermináveis fases insultuosas para nós, humanos. Dá muito pouco, exige muito. “Os deuses vendem quando dão” (Fernando Pessoa).
Algumas telas e a maneira como seus personagens estão postos, em movimentos de dança, mostram como se houvesse tanto motivo para festejar a vida e seus hiatos de esquecer do que é feito o minério da vida, da realidade como esta se apresenta com seus altos e baixos — parecida com a linha grega da vida — e nos conduzem a uma convivência familiar sempre escolhida pelo acaso ou em trabalhos despersonalizados (70% da humanidade trabalha com o que não gosta).

Quero dizer que a arte – por meio de enquadramentos geométricos vários, suas cores, seus nomes e desenhos – nos lança para além do tangível, que nos chega sem permissão e vai atualizando o tempo com suas compridas passadas, nunca em uma progressão aritmética, mas sempre geométrica, impingindo dramas, tramas e dores. Enfim, até certo ponto, o fazer artístico nos conduz a esses recortes de fantasias: se quiser de outra forma, há outra realidade possível, mas que não passa de pura ilusão suspensa na parede.

 

As opiniões expressas neste ensaio são de responsabilidade exclusiva do autor e não refletem, necessariamente, a opinião da Revista Arte Brasileira.

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